E A VERGONHA FEMININA
Ruth de Aquino
Ruth de Aquino
“Existem os médicos e os monstros. Ele é um médico monstro.” Assim uma ex-paciente se referiu ao doutor Roger Abdelmassih, na TV Globo. Calvo, de cabelos e bigodes brancos, 65 anos, esse especialista em reprodução humana foi preso ao chegar a sua clínica de luxo em São Paulo. A acusação é de abuso sexual contra 39 mulheres desde os anos 70. Os depoimentos são de embrulhar o estômago. Constrangedoras também são as piadinhas masculinas.
Homens que se consideram inteligentes e sensíveis perguntam, rindo: “Que droga será essa que deixa as mulheres mais amorosas e submissas?”. Também há os que não entendem por que as mulheres não denunciaram o médico antes: “Elas deveriam sair da clínica e ir direto à delegacia. Por que ficaram caladas?”.
Talvez eles não possam mesmo compreender o alcance do sentimento feminino de vergonha, humilhação, revolta, nojo e culpa. Um sentimento pleno de ambiguidades invade a mulher em episódios que misturam abuso sexual a poder. Médicos podem ter mais poder que chefes ou maridos. Como desmascará-los? Especialmente o médico que promete dar a ela a capacidade de gerar um filho. É visto quase como um deus. Elas se tornam reféns dele e de um sonho.
Não sei se Abdelmassih é culpado ou inocente. Nem o advogado de defesa nem o filho dele compreendem o “motivo” das denúncias. O médico escreveu um artigo em que pergunta: “Qual a verdadeira motivação para esse movimento que mais se caracteriza como sanha de vendeta, que se expressa em denúncias esvaziadas de sentido, em acusações perversas, subjetivas, sem materialidade?”.
Pois é, doutor. Não parece haver nenhum motivo nos depoimentos das mulheres além de restabelecer uma verdade, restaurar a dignidade, devolver a humilhação e cassar o médico que, segundo elas, um dia as beijou na boca na cama ginecológica, encostou-as com seu corpanzil na parede, passou a mão em seus seios e corpo. E, segundo algumas, as penetrou levantando o lençol que as cobria quando saíam da sedação.
Entre as 39 mulheres que já relataram crimes sexuais na clínica de Abdelmassih, umas conseguiram ter filhos, outras não. O tratamento de fertilização na clínica pode custar R$ 200 mil, dependendo do tempo e da sofisticação. A primeira acusação de abuso, em abril de 2008, não foi de uma ex-paciente, mas de uma ex-funcionária. Natural.
As pacientes só ganharam coragem para se confessar vítimas quando houve uma denúncia séria do Ministério Público. Elas não estavam mais sozinhas. A cena sem testemunhas – “subjetiva e sem materialidade”, nas palavras do médico – poderia vir a público com menos danos morais. Já não seria a palavra de uma mulher anônima contra a palavra de um médico rico, poderoso e influente.
O advogado de defesa alega que o número é irrisório diante das 20 mil pacientes que o médico tratou na vida. Eu me pergunto se o número importa para a acusação de crime. Talvez importe para uma conclusão de distúrbio de personalidade. Um homicida é tratado de modo diferente de um serial killer. Mas um médico que trai a confiança e aproveita a vulnerabilidade de uma paciente, uma só que seja, para atacá-la sexualmente deveria rasgar seu diploma.
Uma ex-paciente de Abdelmassih me contou o que sentiu: “No dia da inoculação, eu estava deitada na cama ginecológica, o doutor Roger entrou. Pegou na minha mão e disse: ‘Não se preocupe, vou fazer meu máximo, vou te dar este presente’. Era o momento de maior ansiedade no tratamento. Ele se debruçou e pensei que fosse falar ao meu ouvido, mas me beijou na boca. Não foi um selinho. Ele colocou a língua. Não correspondi, mas fui pega de surpresa, e depois pensei: ‘Por que não falei: seu louco, para com isso!’. Ao sair, meu companheiro perguntou: ‘Tudo bem?’. Fiquei muda, com medo de ele fazer um escândalo na clínica. Se denunciasse, temia ser acusada de ter dado brecha para ele. Tive vergonha. E me culpei de não ter reagido. Mas entendi por que me sentia intimidada”.
No consultório, disse ela, Abdelmassih tem porta-retratos com a mulher, o filho e parece muito sério. Volta e meia anda com um padre pelos corredores, o que reforça sua aura de respeito.
Homens que se consideram inteligentes e sensíveis perguntam, rindo: “Que droga será essa que deixa as mulheres mais amorosas e submissas?”. Também há os que não entendem por que as mulheres não denunciaram o médico antes: “Elas deveriam sair da clínica e ir direto à delegacia. Por que ficaram caladas?”.
Talvez eles não possam mesmo compreender o alcance do sentimento feminino de vergonha, humilhação, revolta, nojo e culpa. Um sentimento pleno de ambiguidades invade a mulher em episódios que misturam abuso sexual a poder. Médicos podem ter mais poder que chefes ou maridos. Como desmascará-los? Especialmente o médico que promete dar a ela a capacidade de gerar um filho. É visto quase como um deus. Elas se tornam reféns dele e de um sonho.
Não sei se Abdelmassih é culpado ou inocente. Nem o advogado de defesa nem o filho dele compreendem o “motivo” das denúncias. O médico escreveu um artigo em que pergunta: “Qual a verdadeira motivação para esse movimento que mais se caracteriza como sanha de vendeta, que se expressa em denúncias esvaziadas de sentido, em acusações perversas, subjetivas, sem materialidade?”.
Pois é, doutor. Não parece haver nenhum motivo nos depoimentos das mulheres além de restabelecer uma verdade, restaurar a dignidade, devolver a humilhação e cassar o médico que, segundo elas, um dia as beijou na boca na cama ginecológica, encostou-as com seu corpanzil na parede, passou a mão em seus seios e corpo. E, segundo algumas, as penetrou levantando o lençol que as cobria quando saíam da sedação.
Entre as 39 mulheres que já relataram crimes sexuais na clínica de Abdelmassih, umas conseguiram ter filhos, outras não. O tratamento de fertilização na clínica pode custar R$ 200 mil, dependendo do tempo e da sofisticação. A primeira acusação de abuso, em abril de 2008, não foi de uma ex-paciente, mas de uma ex-funcionária. Natural.
As pacientes só ganharam coragem para se confessar vítimas quando houve uma denúncia séria do Ministério Público. Elas não estavam mais sozinhas. A cena sem testemunhas – “subjetiva e sem materialidade”, nas palavras do médico – poderia vir a público com menos danos morais. Já não seria a palavra de uma mulher anônima contra a palavra de um médico rico, poderoso e influente.
O advogado de defesa alega que o número é irrisório diante das 20 mil pacientes que o médico tratou na vida. Eu me pergunto se o número importa para a acusação de crime. Talvez importe para uma conclusão de distúrbio de personalidade. Um homicida é tratado de modo diferente de um serial killer. Mas um médico que trai a confiança e aproveita a vulnerabilidade de uma paciente, uma só que seja, para atacá-la sexualmente deveria rasgar seu diploma.
Uma ex-paciente de Abdelmassih me contou o que sentiu: “No dia da inoculação, eu estava deitada na cama ginecológica, o doutor Roger entrou. Pegou na minha mão e disse: ‘Não se preocupe, vou fazer meu máximo, vou te dar este presente’. Era o momento de maior ansiedade no tratamento. Ele se debruçou e pensei que fosse falar ao meu ouvido, mas me beijou na boca. Não foi um selinho. Ele colocou a língua. Não correspondi, mas fui pega de surpresa, e depois pensei: ‘Por que não falei: seu louco, para com isso!’. Ao sair, meu companheiro perguntou: ‘Tudo bem?’. Fiquei muda, com medo de ele fazer um escândalo na clínica. Se denunciasse, temia ser acusada de ter dado brecha para ele. Tive vergonha. E me culpei de não ter reagido. Mas entendi por que me sentia intimidada”.
No consultório, disse ela, Abdelmassih tem porta-retratos com a mulher, o filho e parece muito sério. Volta e meia anda com um padre pelos corredores, o que reforça sua aura de respeito.
Transcrito da revista Época, 21 de agosto de 2009
Confiar em quem?
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