“Queimar de amor: se é por isso que eu sou culpado,
que o seja, também, a minha purificação!”.
O Testamento de um herético
ou a última prece de Giordano Bruno
Eugen Drewermann
que o seja, também, a minha purificação!”.
O Testamento de um herético
ou a última prece de Giordano Bruno
Eugen Drewermann
Há quatrocentos e dez anos e pouco mais de dois meses, mais precisamente no dia 17 de fevereiro de 1600, morria, aos cinqüenta e um anos de idade, o filósofo e dominicano italiano Giordano Bruno, que, aliás, pode até nem ter sido morto crucificado, como “um certo Jesus Cristo”, que, para ele, nada mais era – deve continuar sendo –, “a maior arma da Igreja [católica] para intimidar os seus fiéis”, mas que morreu na vertical morreu, queimado vivo pelas labaredas de mais uma das fogueiras da Inquisição, no Campo dei Fiori, em Roma, na Itália. De tamanha violência, restaram, apenas, as cinzas de um homem considerado perigoso pelos inquisidores somente porque escreveu sobre o amor e se sentia um pássaro, desejoso de voar “além de todo limite”.
Acusado, julgado culpado e condenado à fogueira por defender a teoria heliocêntrica do astrônomo polonês Nicolau Copérnico (1473 - 1543) e defender demais idéias consideradas heréticas, entre elas a reencarnação e ter escrito o livro Heróicos furores (De gli eroici furori, 1585), uma elegia ao amor, Bruno era um ser humano de bem com a vida, espirituoso e, sobretudo, sábio, sem a psicopatia dos seus pares de batina. Segundo o filósofo, historiador e escritor norte-americano Will Durant (1885 - 1981), em sua História da civilização, ao ser anunciada a sentença de que seria executado piamente, ou seja, sem profusão de sangue, que significava morte pela fogueira, Bruno teria enfrentado os seus algozes e, com uma coragem e ousadia admiráveis, dito: “Teme mais a força em pronunciar a sentença do que eu em escutá-la”.
Oito dias, entretanto, ainda foram dados a Bruno a fim de que ele passasse a limpo, digamos, o seu passado, abjurando as idéias que dizia defender. No entanto, firme em suas convicções, o filósofo silenciou, nada fazendo para evitar o iminente desfecho que os inquisidores haviam decidido para pôr termo a sua vida. Passados, portanto, pouco mais de quatro séculos da sua morte, a Igreja católica até já ensaiou alguns passos de humildade quando externou o seu lamento pelo trágico fim do religioso. Porém, não se arrependeu do feito e se nega a reabilitá-lo. Quanto paradoxo! O que, de certa forma, não é novidade, ainda mais quando sabemos que esse tipo de atitude é típico da Igreja católica, dissimulada e fraudulenta por excelência.
Bruno, por sua vez, além de comungar com as idéias de Copérnico, que afirmava que o Sol e não a Terra é o centro do mundo, achava que o universo é infinito e em perpétua evolução. Defendia, ainda, a igualdade de homens e mulheres, foi professor do Colégio de França e protegido por nobres, sendo, permanentemente, alvo de ataques da Igreja católica. Excomungado pelos calvinistas, em Genebra, e pelos luteranos, em Wittenberg, foi condenado pelos católicos em Roma e, no ano de 1592, detido pela Inquisição em Veneza. Destino? O calabouço. Corajoso a ponto de, mesmo torturado brutalmente, não abjurar das suas idéias, Bruno foi acusado de “herege, impenitente, obcecado e obstinado” – acusação, inclusive, registrada em ata por seus inquisidores.
De uma “delicadeza extremada”, aliás, os inquisidores de Bruno nem hesitaram em lhe cravar uma estaca na língua - ou cortá-la, sei lá! - antes de levá-lo à fogueira, como se esse hediondo gesto fosse capaz de anular ou minimizar o poder da sua palavra que, é incontestável, atravessa os séculos, ecoando por toda parte, sempre a encontrar um ouvinte atento ou um leitor bem-aventurado, já que, felizmente, os seus escritos não foram queimados em uma fogueira, não desapareceram, misteriosamente, como se supõe ter sido O elogio ao riso, do filósofo grego Aristóteles (384 - 322), nem se perderam ao longo do tempo. Ao contrário! Eles chegaram até nós. Segundo a socióloga brasileira Ana Isabel Neves, em seu artigo Giordano Bruno – O Grande filósofo do renascimento...
Em 1563, aos quinze anos de idade, Bruno é enviado por seus pais a um mosteiro dominicano em Nápoles. À época, já era “visível a sua rebeldia em relação à doutrina católica, considerando que os padres o tentavam afastar das mais dignas e altas ocupações e aprisionar o seu espírito para fazê-lo escravo de um sistema tolo e miserável”. Ainda segundo Neves: “Desde muito cedo que Giordano mostrou o seu espírito independente em relação aos dogmas da Igreja Católica, chegando mesmo a retirar todas as imagens dos santos da sua cela”, declarando, abertamente, a sua aversão à literatura recomendada no mosteiro. O fato é que, em 1572, Bruno é ordenado sacerdote aos vinte e quatro anos, celebrando a sua primeira missa – a essa, com certeza, eu teria assistido!
Então... Prosseguindo com os seus estudos de teologia, Bruno permanece no mosteiro dominicano até 1576, quando o abandona sob acusação de heresia – a primeira de uma série que lhe perseguiria pelo resto da sua vida. Curiosamente, explica a socióloga, essa primeira acusação dá-se em conseqüência de uma peça satírica de sua autoria sobre “o ambiente de depravação que o circundava”. Para Neves, Bruno compreende o perigo que representava tal acusação e se muda para Roma, de onde logo tem de partir após um processo de excomunhão. Em Genebra, no ano de 1578, leciona gramática e astronomia. As suas idéias, aliás, recebem o apoio de um nobre italiano, que ajuda o filósofo a disseminá-las. Porém, por desagradar aos calvinistas, termina sendo preso.
Mostrando, contudo, boa vontade em “corrigir” o dito, Bruno é liberto e obrigado a deixar a cidade, chegando, de mala e cuia na França, em 1579. Instalando-se em Paris, onde, doutor em teologia, ganha fama por sua prodigiosa memória e atrai os holofotes para si, desperta a atenção do rei Henrique III (1551 - 1589), que o mantém sob a sua proteção e publica, ainda, em um período de sete anos, cerca de vinte livros de sua autoria, incluindo, de acordo com Neves, “várias [obras] sobre o treino da memória com base num elaborado sistema mnemônico”, ou seja, de uma arte considerada combinatória, de autoria, segundo o filósofo brasileiro Rubens Queiroz Cobra, do místico e poeta catalão Raimundo Lúlio (1235 - 1316).
Tal arte seria, portanto, ainda segundo Cobra, “o resultado de um sistema de associações de idéias por meio de tábuas giratórias com as quais se poderia chegar a todas as combinações possíveis entre sujeitos e predicados, com a possibilidade de responder a todas as indagações do intelecto”. Mas, eis que, em 1583, apesar de bem quisto e aclamado pelo rei, que lhe concede privilégios, Bruno decide mudar-se para a Inglaterra. Na cuia e na mala, cartas de recomendação de Henrique III. A monarquia inglesa, por sua vez, ao contrário do rei da França, considera o filósofo italiano demasiado radical, subversivo e perigoso. Além disso, aborrecido com outros desafetos – o de lhe ser negada, por exemplo, a oportunidade de lecionar em Oxford –, Bruno retorna a Paris.
O ano? 1585. No entanto, por já ter publicado as suas teses contra o pensamento de Aristóteles sobre ciências naturais, desencadeando uma série de polêmicas, Bruno deixa a França e vai para a Alemanha, onde volta a ser alvo de hostilidades. Desta vez, pela universidade de Marburg, que recusa os seus préstimos como professor – frustração essa que Bruno supera ao receber um convite para lecionar na universidade de Wittenberg. Porém, quando os calvinistas passam a ocupar cargos de influência na universidade de Wittenberg, ele não hesita e deixa a cidade, indo, no ano de 1590, a Frankfurt, onde conhece dois italianos, que, em Veneza, publicam livros de sua autoria, despertando o interesse de um político italiano por alguns dos seus escritos.
Infelizmente, em um futuro não muito distante, o tal do político, de nome Zuane Mocenigo (1531 - 1598), que queria porque queria que Bruno o ensinasse a arte de desenvolver a memória, iria revelar-se o pior dos maledetos que, até então, teria cruzado o caminho do filósofo, que, aliás, deveria instalar-se em casa do nobre veneziano para satisfazer-lhe o capricho. Ocorre que, à época, segundo Durant, Bruno, de há muito, já era foragido da Inquisição. Porém, o fato de Veneza gozar da fama de acolher certos "fora-da-lei" encorajou-o a aceitar o convite, não demorando muito para que, em 1591, o herege errante literalmente desembarcasse em Veneza, ignorando que, com o seu gesto, estava dando início ao drama que, em poucos anos, poria fim a sua vida.
Afinal, ao descobrir que Mocenigo pretendia utilizar o seu aprendizado do sistema mnemônico para fins escusos, Bruno recusa-se a transmitir-lhe os seus conhecimentos, sem, contudo, prever as conseqüências do seu gesto. Para Durant, o nobre não teria gostado da atitude de Bruno e, já intrigado que estava com muitas das suas idéias, busca o seu confessor, manifestando um desmedido assombro, enquanto católico, diante das “heresias que o loquaz e incauto filósofo lhe expunha”, omitindo, provavelmente, a sua frustração pelo fato do perito em memória ter recusado ser o seu mestre. Consultando o religioso, se devia ou não denunciar Bruno à Inquisição, Mocenigo teria sido orientado para primeiro tentar reunir provas que, de fato, incriminassem o seu hóspede.
Ocorre que, quando este anuncia o desejo de regressar a Frankfurt, o seu anfitrião não hesita e toma uma drástica decisão: trancafia-o em um quarto de sua casa e o denuncia à Inquisição, que, no dia 23 de maio de 1592, o prende no San Castello, em Veneza, acusado de heresia, posteriormente transferindo-o para Roma. O que se sucedeu, depois disso, das masmorras papais à fogueira plantada no Campo dei Fiori, foi tão dramático e tenebroso que, em nome de Bruno, que ainda queima, é melhor nem descrever aqui os detalhes. Um dos principais acusadores e algozes do filósofo, com a conivência do papa Clemente VIII (1536 - 1605), o cardeal Berllarmino (1542 - 1621), por sua vez, é canonizado, em 1930, pelo papa Pio XI (1857 - 1939). Ninguém merece!
Além disso, o papa Pio XI foi amigo de Benito (ou maldito) Mussolini (1883 - 1945), trancafiando os judeus em Veneza, cujo gueto, inclusive, eu conheci, sendo construído para oprimir e dizimar os pobres coitados na cidade que, só para contrariar, ainda resiste as investidas inclementes das águas, sendo, em minha opinião, um dos lugares mais belos do planeta. Enfim! Por nada fazer, de tão inoperante que era, Pio XI pede a Mussolini que derrube uma estátua de Bruno, edificada no dia 9 de junho de 1889, no Campo dei Fiori, em Roma. Segundo o escritor italiano Enrico Riboni, em seus escritos A Página negra do cristianismo – 2000 anos de crimes, terror e repressão, o ditador, com um filho de nome Bruno, sai em defesa do filósofo.
Mussolini teria dito: “A estátua de Giordano Bruno, melancólica, como o destino desse monge, ficará onde ele está. Tenho a impressão que seria se encarniçar contra esse filósofo que, se equivocado e persistiu no erro, no entanto já pagou”. Asquerosa, além de canonizar Bellarmino, a Igreja católica o faz douto. Deve ter sido em maldades... Segundo a professora espiritual Elizabeth Clare Prophet (1939 - 2009), tudo indica norte-americana, autora de O Elo perdido do cristianismo, juntamente com o seu marido, Erin L. Prophet, de quem não descobri referências biográficas, Bruno foi morto na fogueira “por defender a idéia de que a alma humana poderia, após a morte, retornar a terra num corpo diferente e até continuar a sua evolução em outros mundos além da terra”.
E ela conclui: “Muitos pensadores ocidentais defenderam a idéia da reencarnação. Entre eles está o filósofo francês Voltaire [(1694 - 1778)], o filósofo alemão Schopenhauer [(1788 - 18600)], o estadista americano Benjamim Franklin [(1706 - 1790)], o poeta alemão Goethe [(1749 - 1832)], o novelista francês Honoré de Balzac [(1799 - 1850)] e outros mais. Antes de Cristo [(não se tem data certa para nada)], encontramos, também, a crença greco-romana na reencarnação com Pitágoras [(650 - 570 a. C)], Platão [(427 - 348/347 a. C)], Cícero [(106 - 43 a. C)] e Virgílio [(70 - 19 a. C)], entre outros. Considerando que uma idéia falsa não sobrevive ao tempo, devemos concluir que a reencarnação é uma verdade que não pode ser apagada, por mais que se tente”.
Eu, particularmente, não acredito em reencarnação, mas acho que todos, sem exceção, têm o direito de defender não importa qual tese, não devendo, por pensar diferente de quem quer que seja, ser condenado por isso. Podem tentar e, algumas vezes, até nos tirar bens preciosos que somente a nós pertencem, mas se há um território impenetrável, esse é o da mente. E, nele, não há déspota algum que consiga adentrar - nem nos de Bruno. Agora, quanto à imagem pejorativa de mago que muitos tinham do meu querido filósofo, para quem, inclusive, mago é aquele que investiga a fundo mistérios ocultos da natureza... Por sua prodigiosa memória e vastos conhecimentos, Bruno não passava despercebido, ainda mais quando dizia que a imortalidade da alma era um fato inegável.
Enfim! Bruno questionava se, realmente, é necessário um Deus para que as pessoas possam compreender o mundo e a vida em todas as suas nuances e mistérios. Nesse caso, um Deus que, ao longo da História da humanidade, tem contabilizado, em suas costas, um sem fim de crimes e barbaridades, os quais, em seu nome, homens de carne e osso cometeram sem dó nem piedade. E continuam cometendo. Segundo Neves, poderíamos, inclusive, “dizer que Giordano Bruno foi o mais inspirado filósofo de todo o renascimento, aquele que mais se aproximou da verdade ou sabedoria de todos os tempos e lugares, e que a sua coragem perante o fogo da pérfida Inquisição deverá ser um exemplo para todos aqueles a quem a vontade vacila dia após dia”...
Nathalie Bernardo da Câmara
Publicado, originalmente, no dia 07 de maio de 2010.
Gostei muito do texto. Admirável Giordano Bruno! Estamos carentes de homens de tanta coragem e sabedoria.
ResponderExcluirEste comentário foi removido pelo autor.
ResponderExcluir