domingo, 6 de maio de 2012

SUSTENTABILIDADE: UM IDEAL DE VIDA

Foto: Bob Wolfenson/Vogue Brasil

“A sustentabilidade deve ser entendida como um ideal de vida...”.

Marina Silva
Ambientalista e ex-ministra do Meio Ambiente

 


O ideal de vida de Marina*

Por Afonso Capelas Jr.
Jornalista brasileiro


As vésperas da Rio+20, a ex-senadora fala de como pretende promover uma mudança de paradigma em favor de um novo modelo de desenvolvimento econômico: “Ainda vou decidir se me candidato a algum cargo político neste ano. Mas minha luta ecológica continua”, diz a ex-senadora e ex-ministra do Meio Ambiente Marina Silva logo ao fim da entrevista que concedeu a NATIONAL GEOGRAPHIC BRASIL em uma livraria de Brasília. Antes ela havia participado, durante duas horas, das gravações de um documentário sobre a nova classe média brasileira. Marina está habituada a trabalhar muito; quando adolescente, sua jornada começava de madrugada em uma comunidade do seringal Bagaço, no Acre. Hoje é ainda mais atarefada. Incansável, vive uma maratona de viagens, palestras e entrevistas mundo afora – à noite, ainda sobra fôlego para ler e escrever na cama. A seguir, Marina nos conta como pretende promover uma mudança de paradigma em favor de um novo modelo de desenvolvimento econômico.


AFONSO CAPELAS JR.O que a senhora espera da Rio+20?
MARINA SILVA – Aguardo uma avaliação séria do que foi feito nos últimos 20 anos. É óbvio que chegaremos à conclusão de que foi menos que o necessário. Meu desejo é de que venham novos compromissos para que o encontro não seja uma pá de cal na memória da Rio 92. A Rio+20 é um processo dinâmico que envolve centenas de países. Cada um precisa fazer seu dever de casa. No Brasil, está acontecendo um grande retrocesso com a mudança da legislação ambiental para retomada do aumento de áreas de cultivo. É uma contradição. A prova de que o país não precisa disso é que estamos há quase oito anos com crescimento econômico, diminuição da pobreza e do desmatamento. De um modo geral, é preciso não subtrair a questão ambiental desse encontro mundial.

AFONSO CAPELAS JR.A senhora concorda com o alerta de um grupo de cientistas de que o encontro pode ser desvirtuado por outros temas, deixando a sustentabilidade e as mudanças climáticas em segundo plano?
MARINA SILVA – Sim. Estão fazendo uma assepsia do tema ambiental, da perda de biodiversidade, do aumento da desertificação e das mudanças no clima para discutir apenas desenvolvimento. Na conferência climática de Durban, chegamos à conclusão de que o planeta está na UTI, mas a intervenção médica só vai acontecer daqui a dez anos. Iremos para a Rio+20 sabendo que estamos vivendo uma crise civilizatória caracterizada por múltiplas crises, e já estão querendo praticar a política do avestruz: fazer vista grossa aos problemas ambientais para falar apenas de desenvolvimento e pobreza, como se os dois temas não tivessem como pano de fundo a crise ambiental global. Embora as outras questões sejam relevantes, elas não têm como ser resolvidas pelos mesmos paradigmas dos séculos 19 e 20. É fundamental o protagonismo do Brasil no encontro, descolando-se das posições atrasadas do G77 (grupo de países em desenvolvimento) e abrindo maior liderança dentro do G20 (nações desenvolvidas e emergentes), porque esse grupo representa 80% do PIB da população mundial e das emissões de gases de efeito estufa. Se o G20 se movimentar para a redução das emissões e a mudança do modelo de desenvolvimento, será possível fazer a diferença. Inclusive, alavancar recursos para que as nações pobres se desenvolvam sem repetir o exemplo predatório dos países ricos.

AFONSO CAPELAS JR.Quais contribuições a senhora levará ao encontro no Rio?
MARINA SILVA – Estarei lá como um dos “advogados do milênio”. O Millennium Development Goals (MDG) Advocacy Group é uma organização que trabalha com o secretário-geral da ONU, Ban Ki-moon, para fazer articulação política em benefício dos países pobres e vulneráveis. Para a Rio+20, sugeri uma autoconvocação dos líderes morais do planeta, aqueles que, nos mais diferentes espaços da vida econômica, social, científica e política, estão envolvidos com a causa, não sob a perspectiva imediatista, que nos torna reféns dos interesses das corporações ou da conjuntura política. A ideia é de que, antes da chegada dos chefes de Estado ao encontro, os líderes morais apresentem os pontos necessários para enfrentar o problema. Assim, criamos um espaço de mobilização independente, em que a sociedade possa ouvir da boca dos cientistas qual o tamanho do desafio que temos pela frente.

AFONSO CAPELAS JR.O que a senhora acha que mudou no Brasil quanto às questões socioambientais desde a Rio 92? Avançamos nesse quesito?
MARINA SILVA – Evoluiu a consciência das pessoas. Basta considerar que mais de 20 anos atrás Chico Mendes foi assassinado e apenas meia dúzia de pessoas estavam envolvidas com a causa da Amazônia. Hoje há toda a polêmica em torno do Código Florestal e pesquisas de opinião mostram que 80% dos brasileiros preferem pagar mais pelos alimentos para proteger a floresta. Creio que são os maiores indicadores de que a consciência é outra. Isso ainda não se traduz em mudança de atitude, mas há muitos passos nessa direção. Nas duas décadas passadas, evoluiu também a base legal para a proteção de nossos ativos ambientais. Temos agora uma lei de crimes contra a natureza, o mapa dos biomas brasileiros e das zonas prioritárias para conservação da biodiversidade, uma lei nacional das águas e um sistema nacional de unidades de conservação, com 70 milhões de hectares de áreas preservadas. Orgulho-me de saber que, desse total, 24 milhões de hectares foram criados durante a minha gestão como ministra do Meio Ambiente, de 2003 a 2008. Se não houvesse essa evolução de consciência, sequer teria sido possível implementar o Plano de Combate ao Desmatamento, que levou à redução de 80% da derrubada da floresta graças à inibição de 1,5 mil propriedades ilegais e à aplicação de 4 bilhões de reais em multas.

AFONSO CAPELAS JR.Tal consciência despontou nos políticos ou nos cidadãos?
MARINA SILVA – Sobretudo nos cidadãos. Apesar disso existe um retrocesso, em que a maioria dos políticos quer alterar o Código Florestal e a legislação de criação de terras indígenas no Brasil. Também removeram as competências do Ibama para fiscalizar o desmatamento e no primeiro ano da presidente Dilma nenhum hectare de unidade de conservação sequer foi criado. Vejo, então, um paradoxo: enquanto aumenta a consciência ambiental das pessoas, notamos um recuo da representação política, pautada por grupos – ainda que minoritários – mais conservadores, na questão socioambiental. É um fenômeno que acontece no mundo inteiro. Há um lobby pesado contra qualquer medida nos Estados Unidos em relação à Convenção do Clima. Mas em boa parte da sociedade mundial cresceu a consciência socioambiental.

AFONSO CAPELAS JR.Em São Paulo, as sacolas plásticas descartáveis foram abolidas nos supermercados, e criou-se uma polêmica. Como mudar hábitos mais complexos se os mais simples ainda são difíceis?
MARINA SILVA – Não são questões lineares. Essa consciência precisa se traduzir em mudança de atitude, mas com as pessoas defendendo a natureza no próprio ambiente. É fácil para os paulistas defender a Floresta Amazônica, mas eles têm dificuldade em diminuir o uso das sacolas plásticas. Contudo, é bom saber que, entre os paulistas, há muita gente reduzindo a utilização das sacolas. Assim como na Amazônia muita gente está disposta a fazer manejo sustentável, certificar sua produção, ter mais respeito com as populações locais. Aos poucos, os bons exemplos vão ganhando escala.

AFONSO CAPELAS JR.A senhora é contra novas hidrelétricas na Amazônia e defende um plebiscito para que decidamos pelo uso de energia nuclear. Qual a alternativa viável para atender à demanda por energia no Brasil?
MARINA SILVA – Cerca de 45% de nossa matriz energética é limpa. O país tem também todos os meios e as condições para implantar uma matriz energética que seja também diversificada e segura (o que não é o caso da nuclear). Não sou contra o uso do nosso potencial hidrelétrico. Mas a maior parte dele está na Amazônia (cerca de 63%), e não é possível continuar tratando os problemas socioambientais da região como se fossem externalidades. Todos os projetos devem ser viáveis dos pontos de vista econômico, social e ambiental. No caso de Belo Monte, não há indício de que essa premissa está assegurada; por isso me manifesto contra. Se for viável sob essas perspectivas, não vejo por que não fazê-lo. Assim como não vejo por que não ter uma atitude mais aberta no processo de planejamento energético. Ele deve ser visível, democrático, com a contribuição dos diferentes segmentos da sociedade, para que não nos deixe reféns de cada projeto. Não é possível que um país com grande capacidade econômica esteja à mercê de um empreendimento desses a cada ano, sob pena de apagões. É falta de um planejamento bem feito. Temos também potencial imenso para a energia solar, eólica e da biomassa, a ponto de o ministro da Agricultura dizer que temos três Belo Monte com o que produzimos de bagaço e palha de cana-de-açúcar.

AFONSO CAPELAS JR.Conservação e desenvolvimento são compatíveis? O conceito de sustentabilidade pode ser aplicável em larga escala no Brasil?
MARINA SILVA – Não é questão de compatibilizar, mas de integrar. O panorama é este: há a ameaça de inviabilizar a vida no planeta com um aumento de 2 graus na temperatura. Hoje se perde mil vezes mais biodiversidade do que 50 anos atrás e os territórios desertificados avançam com prejuízos incalculáveis. O grande desafio da humanidade é integrar economia e ecologia na mesma equação. E a Amazônia é a região do planeta onde o desenvolvimento sustentável pode ser mais factível. Temos 82% da floresta preservada, um adensamento de população adequado à preservação do bioma e uma quantidade imensa de recursos naturais que nos dá potencial não apenas para o seu uso diversificado mas também para uma economia diversificada. A Amazônia é o lugar no qual o Brasil pode experimentar a mudança de paradigma de desenvolvimento. Não se trata de ser pessimista ou otimista, mas persistente. Se o Brasil quer uma economia de baixo carbono, deve insistir nas prioridades, nas políticas públicas e nos projetos a serem tocados ao longo de décadas. Os países que se desenvolveram na lógica do século 20 não fizeram isso, pois mudaram de rota a cada governo.

AFONSO CAPELAS JR.O texto do Código Florestal, em sua última versão, está bom?
MARINA SILVA – O projeto de lei aprovado no Senado é péssimo. Reduz a proteção, potencializa o desmatamento e comete uma injustiça ao perdoar os que desmataram de forma ilegal. Precisa ser vetado pela presidente Dilma. Ela assumiu um compromisso de campanha de impedir qualquer iniciativa que signifique anistia para desmatadores e aumento no desmatamento. Esse projeto parece um ensaio geral para demolir a governança ambiental brasileira, estabelecida a duras penas desde que a Constituição definiu o meio ambiente como um direito dos brasileiros.

AFONSO CAPELAS JR.A mulher brasileira está mais ativa na política, nas empresas, na família. Qual o papel desempenhado por ela na sociedade atual?
MARINA SILVA – Em um século as mulheres aprenderam a fazer tudo o que os homens fazem, depois de milhares de anos consideradas incapazes. Hoje já nem me preocupo tanto com o que as mulheres brasileiras são capazes, mas em como fazer para que os homens aprendam com elas para que não tenhamos novos desequilíbrios no futuro. Por outro lado, nem sempre os avanços legais são reais. Se no passado as pioneiras do 8 de Março queriam diminuição na jornada de trabalho e igualdade salarial, hoje essa equiparação ainda não aconteceu para grande parte das mulheres, que recebem 25% menos nos mesmos cargos ocupados pelos homens. Muitas ainda perdem o emprego em função da maternidade. Sem falar da violência contra elas. Essa realidade não mudou. O potencial da mulher é tão grande quanto o do homem; só nos faltam as mesmas oportunidades. Considerando-se que nós, mulheres, representamos mais da metade da população brasileira, seria um desperdício se continuássemos sendo tratadas como incapazes. É possível buscar igualdade na diferença e dar atenção à contribuição feminina, com sua maneira de ver e sentir o mundo.

AFONSO CAPELAS JR.De onde veio a admiração por Jane Goodall, defensora dos chipanzés na Tanzânia?
MARINA SILVA – Quando a conheci, em 2006, nos Estados Unidos, achei-a uma pessoa muito interessante. A iniciativa do Instituto Marina Silva foi inspirada nela. Nessa época, eu não queria me candidatar na política, mas tinha a intenção de continuar minha luta no campo socioambiental. Aí pensei: vou fazer como Jane Goodall – que defende os primatas e o desenvolvimento sustentável – e trabalhar em uma mudança no modelo de desenvolvimento econômico.

AFONSO CAPELAS JR.Como pretende promover essa mudança?
MARINA SILVA – Com mobilização e educação para que as atitudes sustentáveis não se transformem em um peso na hora de economizar energia, separar o lixo ou decidir quem será seu representante na política. A sustentabilidade deve ser entendida como um ideal de vida que precisa estar na popa – como um motor a nos impulsionar – e não na proa, apenas como uma bandeira para exibir. Não basta conhecer o jogo, é preciso saber jogar. Mas entre o conhecimento e o saber há um longo caminho. E essa é uma mudança civilizatória, que deve ser de todo mundo ao mesmo tempo e agora. Também não é apenas uma questão de se adaptar; acho até que em alguns pontos teremos de nos desadaptar. Uma desadaptação criativa, uma descontinuidade produtiva. Mesmo que não saibamos ainda como é a mudança que desejamos, podemos descontinuar a realidade que não queremos ver prosperando.

*Entrevista publicada na National Geographic Brasil no dia 24 de abril de 2012 – Edição nº 146.

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