quarta-feira, 19 de fevereiro de 2014

MÁSCARAS E VAQUINHAS

“Eu não participo e acho que não pode ser uma orientação partidária fazer isso...”.

Olívio Dutra, um dos fundadores do Partido dos Trabalhadores (PT), ex-deputado federal, ex-prefeito de Porto Alegre, ex-governador do Rio Grande do Sul e ex-ministro das Cidades no primeiro mandato do ex-presidente Lula, opinando sobre as doações recebidas por políticos do PT que, detidos, foram retidos na Papuda, no Distrito Federal, em entrevista registrada pela repórter Rosane de Oliveira em janeiro do corrente. Para Olívio Dutra, que começou a sua militância como sindicalista, em declaração ao Estadão em novembro de 2013, os referidos detentos não são “presos políticos”. Eles foram julgados e, agora, “estão cumprindo pena por condutas políticas”.


Neobrasileirismos ou o sucesso da vaquinha

19 de fevereiro de 2014

Roberto Damatta - O Estado de S. Paulo


Brasileirismos são invenções brasileiras. No campo da música, da comida e da sexualidade, elas abundam. São brasileirismos o jogo do bicho, o samba, a feijoada, confundir fama com inteligência, não prender autoridade e dizer que bunda não tem sexo.

A presença mascarada dos elos pessoais abraçados pela norma do dar-para-receber e do vice-versa como algo obrigatório no espaço público é um outro brasileirismo que contraria a lei válida para todos e nos faz desconfiar da liberdade.

Liberdade que leva a escolhas, individualiza e acontece justamente na rua. Toleramos a liberdade porque ela é um conceito chave nas constituições "avançadas" que copiamos dos americanos, franceses e ingleses. Daí a contradição tragicômica: temos leis avançadíssimas, sínteses das melhores normas jamais produzidas no chamado "mundo civilizado", mas lamentavelmente não temos franceses, americanos e ingleses para segui-las.

Voltemos, entrementes, aos temas clássicos. Se a liberdade tem sido usada pelas elites sobretudo para matar o competidor, a igualdade permanece sem solução.

Continuamos alérgicos à sua aplicação e o seu uso é sempre constrangido pelos rotineiros "esse tem biografia", "esse é meu amigo", "esse é do nosso partido", que são parte de um outro brasileirismo. A duplicidade ética, expressa no axioma: aos inimigos a lei; aos amigos, tudo. Um postulado que impede, no modelo e na realidade, o tratamento igualitário e um mínimo de coerência.

* * *

A brasileiríssima máscara entra em cena em tempos democráticos. Impossível não tomá-la, como ocorre em outras sociedades, como um símbolo de forças antissociais: do incesto que nega a oposição entre afinidade e consanguinidade, ou de condutas abusivas e licenciosas cuja concretização exige a invisibilidade ou o disfarce como no Carnaval.

Estamos pensando em legislar o uso da máscara. Balas de borracha para policiais; máscaras para os manifestantes. Mas se até em centro espírita as almas dizem quem são, como admitir o poder dado a mascarados quando o ideal democrata é justamente conhecer o adversário? Em meio aos elos confusos entre as injustiças seculares e direito ao ativismo, o uso da máscara aumenta ou diminui a possibilidade do irracionalismo e da boçalidade contida na violência? Afinal, estamos querendo consolidar ou liquidar instituições?

* * *

Vivemos um momento de exigências igualitárias que demandam o fim da separação entre a casa e a rua: lei e cadeia na rua para os pé rapados; e, na casa, embargos de todos os tipos para os amigos e parentes. Chamam isso de "corporativismo" mas o nome verdadeiro é personalismo, como disse faz tempo.

Brasileirismo agradável foi testemunhar a sinceridade que baixou na Câmara dos Deputados com o voto aberto. O voto sem máscaras porque ele liquida a duplicidade entre casa e rua. "Como companheiro e colega eu não posso te cassar. Amanhã pode ser minha vez e você, mesmo sem ser do meu partido, retribui. Mas no plenário eu sou obrigado a fazê-lo, compreende? Antigamente, quando o voto secreto era minha máscara eu votava contra a perda do teu mandato, pois tu és realmente um ladrão! Mas, agora, temos essa lei que me obriga que eu seja o mesmo tanto em casa quanto na rua. Então, vejam que coisa triste para a ética da casa e das amizades, eu sou obrigado a tirar a mascara e a ser sincero!"

A sinceridade é um neobrasileirismo.

Ser o mesmo em todos os lugares é impossível. Mas ter o propósito de ser o mesmo é o que chamamos de honestidade.
A próxima eleição vai dizer se a honestidade é uma tortura ou uma bênção.

* * *

O ministro Gilmar Mendes aponta uma anomalia. As multas que os condenados devem pagar não podem ser transferidas, por meio de uma brasileiríssima vaquinha, para outras pessoas. A sugestão do ministro seria a de fazer uma vaquinha capaz de pagar o mensalão.

Tal parecer me lembra um evento bizarro mas idêntico, ocorrido nos primórdios da ditadura militar, em 1964, no governo Castelo Branco. Foi a campanha "Ouro para o bem do Brasil", destinada a reunir ouro para pagar a dívida externa brasileira. Tal vaquinha fez com que muitas pessoas doassem alianças e medalhinhas mas, diferentemente da vaquinha dos mensaleiros, jamais se soube onde o ouro foi parar.

Mas o brasileirismo da vaquinha que retorna, como na ditadura, para livrar as multas do mensalão, é um sucesso.

E se um condenado a 20 anos, pergunta-me um amigo irritado, resolver fazer uma vaquinha e conseguir na internet gente que fique em seu nome na prisão por um dia? Façamos o calculo: 20 vezes 365 é igual a 7.300 dias. Ora, diz ele, considerando o que os mensaleiros condenados já arrecadaram até agora, seria tranquilo conseguir 7 mil e tantas pessoas solidárias para ficarem por um dia na cadeia no lugar do condenado. E eles, é claro, iriam continuar atuando como heróis nacionais injustiçados por uma mascarada de cunho político. Se tudo é injustiça burguesa, por que não aplicar a brasileiríssima vaquinha para outras penalidades?

Tento argumentar, mas o amigo toma uma cerveja.

* * *

O mesmo sujeito me diz o seguinte: "Olha aqui, DaMatta, estou pensando em fazer uma vaquinha para deixar de trabalhar como um condenado. Quero poder dizer não - esse imenso privilégio dos abençoados". Como bom brasileiro, não disse nada. Mas pensei: se der certo eu também faço!



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