Polarização da eleição
resultou da semelhança entre os dois candidatos
Dilma ganhou
porque, no duelo de insultos, convenceu a maioria do eleitorado de que seu
adversário era pior
Folha de S.Paulo – Edição Especial
MARIO CESAR CARVALHO
DE SÃO PAULO
A
polarização da campanha presidencial é resultado da semelhança entre os
programas dos dois candidatos, segundo o historiador José Murilo de Carvalho,
75, autor de Cidadania no Brasil: O
Longo Caminho. "Aí entra a tática dos marqueteiros para marcar a diferença
e mobilizar os fiéis: agredir, insultar, criar factoides", diz.
A divisão do
país vai arrefecer, diz ele, porque problemas reais terão de ser enfrentados,
como o baixo crescimento da economia: "Não há política social que se
sustente com crescimento zero".
Folha - Por
que Dilma Rousseff venceu as eleições?
José Murilo
de Carvalho - No duelo de insultos em que se transformou
a campanha, ganhou quem conseguiu convencer a maioria dos eleitores de que o
adversário era pior. Dito isso, cabe acrescentar que a vencedora terá que levar
em conta que o eleitorado se dividiu ao meio, que seu novo mandato exigirá
menos voluntarismo e mais negociação e que, sem retomar o crescimento, todas as
conquistas estarão ameaçadas.
Por que
essas eleições foram tão polarizadas, com um grau de agressividade que não se
via desde a disputa entre Collor e Lula, em 1989?
Meu primeiro
trabalho publicado foi sobre uma feroz luta política de família em uma cidade
mineira no século 20. Fiquei arrasado quando um espírito maquiaveliano local
ironizou meu trabalho. Tudo é planejado, disse ele, os dois chefes beligerantes
são casados com duas irmãs. A polarização, mesmo violenta, continuou ele, é
essencial para a manutenção da lealdade dos seguidores. Sem saber, ele
formulava uma lei da dinâmica do conflito social.
Quem viu o
último debate dos candidatos deve ter notado que nos blocos em que se
enfrentavam eram lobos agressivos. Nos blocos em que respondiam perguntas de
eleitores eram cordeiros que concordavam em tudo. Boa parte da polarização
deve-se à semelhança entre os programas dos candidatos. Aí entra a tática dos marqueteiros
para marcar a diferença e mobilizar os fiéis: agredir, insultar, criar
factoides.
Pelo lado
positivo, diferentemente das polarizações de 1954 e 1964, que levaram a uma
tragédia e a um golpe, ninguém apelou para solução extraconstitucional. Aos trancos
e barrancos, vamos em frente.
As mentiras
usadas tanto pelo PT quanto pelo PSDB são aceitáveis numa democracia?
A baixaria é
típica de democracia imatura. Em matéria de etiqueta política, ainda comemos
com a mão. O fato deve-se em parte ao atraso de nossa democratização política.
Há pouco mais de meio século é que o povo começou a entrar na política, antes
comandada por bacharéis. A invasão do povo, como eleitor e como eleito, não
poderia deixar de ter consequência para o comportamento político, sobretudo com
as facilidades da internet. Não é para elogiar, mas é um progresso. Imagino que
prática mais alongada de competição fará com que haja mais "fair
play".
O que
explica o grau de violência na campanha?
Uma das
causas é o fato de o mesmo grupo político estar no controle do poder há 12
anos. No Brasil republicano, só durante as duas ditaduras tivemos grupos que
ficaram no poder mais tempo do que isso. Nossa longa tradição estatista e
patrimonialista faz com que enorme prêmio seja colocado no controle do Estado.
Ele é a principal fonte de poder, prestígio e riqueza. São muitas as vantagens
materiais que traz em termos de empregos, cargos de confiança, diretorias de
estatais, contratos milionários, favorecimentos de amigos. Quem está dentro não
quer sair, quem está fora quer entrar.
O sr. acha
que o país sairá dividido da eleição ou a agressividade é passageira?
Sairá
dividido, mas a intensidade da agressão diminuirá no dia a dia da política.
Algum conflito permanecerá. Ao lado de muitas convergências, devidamente
ocultadas, há divergência real entre os dois principais partidos, sobretudo no
que diz respeito às políticas econômica, financeira e à política externa. Na
política econômica, mais controle e estatismo de um lado, mais mercado e
autorregulação do outro. Na financeira, o oposto, mais frouxidão versus mais
controle. No setor externo, mais política de governo num campo, mais política
de Estado no outro. Em termos amplos, mais ênfase na igualdade de um lado, mais
na liberdade, do outro.
Qual seria a
melhor maneira de refrear os ânimos?
PT e PMDB
não têm condições de governar sozinhos, precisarão de alianças, como sempre
precisaram. Isso já será um fator de arrefecimentos de ânimos. O PMDB
continuará como o maior partido no Congresso e com o maior número de
governadores. Continuará como árbitro da política e fator de moderação. Além
disso, a realidade se imporá. Certos problemas terão de ser enfrentados. O mais
importante é o do crescimento da economia. Não há política social ou nível
baixo de desemprego que se sustente com crescimento zero.
O Brasil tem
50 milhões que recebem o Bolsa Família. Esse contingente provocou alguma
mudança nas eleições?
Desde a
segunda eleição de Lula, o número de pessoas com Bolsa Família em determinado
Estado tem apresentado correlação positiva com o voto no PT. O Bolsa Família,
embora necessário e justificável, dadas nossas condições sociais, criou uma
grande clientela eleitoral. As acusações de que o adversário acabaria com a
bolsa assustaram muita gente.
O PT
martelou na tecla de que a eleição era uma disputa de ricos contra pobres. Isso
terá impacto num futuro próximo?
Como toda
polarização, é uma estratégia arriscada, inclusive para o PT. Primeiro porque é
difícil saber onde termina o pobre, onde começa o rico. Depois, acabar com a
pobreza é acabar com o PT eleitoralmente falando.
Por que a
corrupção foi um dos temas dominantes da campanha, mas não teve efeito decisivo
no pleito?
A
sensibilidade para a corrupção reduz-se quando entra em jogo a percepção de
interesses. Ela é maior entre os que menos dependem do governo, menor entre os
que dependem mais.
O Brasil foi
palco de grandes manifestações em 2013. Por que essas questões não foram
discutidas na campanha?
A tática de
polarização teve êxito. Votos brancos e nulos não foram significativos. Mesmo
os eleitores de Marina, que poderiam ser considerados votos de protesto contra
a polarização, acabaram optando por um lado ou outro. Mas não nos enganemos. As
causas dos protestos não sumiram. Os dois partidos terão que se reinventar, sob
pena de terem que enfrentar a probabilidade cada vez maior do surgimento de uma
terceira via que acabe com a polarização, liderada por Marina ou outro líder.
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