Foto: Carolina
Amorim
Normas “sanitárias”
obtusas favorecem agroindústria, demonizam utensílios populares e tentam
estigmatizar culturas alimentares brasileiras. Começou campanha para
enfrentá-las
Por Juliana Dias
Outras Palavras – 14/5/2015
A colher de
pau está impregnada de cultura, afetos, memória e sabor. É utensílio
indispensável na cozinha brasileira, utilizada no dia a dia dos lares, seja no
campo ou na cidade. Faz parte do ritual culinário, com seu acervo de gestuais e
saberes. Segundo o sociólogo Gilberto Freyre, o artefato de madeira estava
presente na culinária dos povos indígenas. Por ser um objeto emblemático e
milenar, que mexe com múltiplas questões alimentares, a colher de pau foi
escolhida como elemento simbólico da campanha Comida é Patrimônio, lançada pelo
Fórum Brasileiro de Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (FBSSAN). O
ícone da colher na identidade visual da campanha representa nossa diversidade
em produzir, preparar, servir e comer.
Como parte
das ações estratégicas dessa mobilização, o Fórum lança com exclusividade o
Manifesto Colher de Pau (leia,
ao final, na íntegra), de autoria do antropólogo e museólogo Raul Lody,
pesquisador na área de alimentação, com diversos livros publicados e
idealizador do Museu de Gastronomia Baiana. “O Manifesto Colher de Pau é um
sinal de cuidado, atenção e entendimento da diversidade, respeitando-se a longa
experiência de sanidade e do consumo de alimentos”, destaca Lody. O documento
sintetiza de forma clara e acessível as dificuldades enfrentadas na produção de
alimentos tradicionais, artesanais e de base familiar.
O debate
sobre normas sanitárias mais inclusivas e adequadas à lógica e dinâmicas da
produção familiar e artesanal faz parte da pauta de lutas políticas de muitos
movimentos sociais, organizações e redes, incluindo o FBSSAN. Um dos
desdobramentos desse processo foi a publicação, em 2013, da Resolução da
Diretoria Colegiada (RDC) nº 49, pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária
(ANVISA). Esta RDC trata sobre Inclusão Produtiva com Segurança Sanitária. É
destinada à regulamentação da produção de alimentos pelos microempreendedores
individuais (MEIs), empreendimentos familiares rurais e empreendimentos da
Economia Solidária. Antes da publicação, a proposta passou por consulta
pública, que contou com a contribuição de 150 pessoas e instituições,
envolvendo mais de 6 mil participantes em seminários regionais, segundo dados
da ANVISA.
A RDC busca
dialogar com os princípios de Segurança Alimentar e Nutricional e com uma visão
mais ampliada de saúde, propondo-se a preservar a característica artesanal dos
alimentos e a priorizar uma fiscalização voltada mais para a orientação dos
empreendedores. A Resolução busca ainda promover a integração e a articulação
dos processos e dados do Sistema Nacional de Vigilância Sanitaria (SNVS) com os
demais órgãos e entidades com o objetivo de evitar a duplicidade de exigências
para os empreendimentos. A publicação da RDC, sem dúvida, foi uma importante
conquista, mas agora o desafio é a sua efetiva implementação.
Por outro
lado, a sociedade civil organizada avalia, em Carta
Aberta elaborada em agosto de 2014 e subscrita por 72
organizações, que para a produção e processamento de produtos de origem animal
e polpas de frutas, permanecem normas excludentes e inadequadas e a dificuldade
de diálogo com o Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (MAPA).
O documento
apontou que apesar das mudanças, a legislação sanitária ainda mantém padrões de
qualidade baseado na produção agroindustrial de larga escala, padronizados e
com uso intensivo de insumos químicos. Com isso, acaba aproximando o modelo
artesanal da industrialização e artificialização, aumentando custos e
afastando-o de suas características socioculturais. “É urgente e necessário que
se deem passos largos e concretos para avançar nessa questão por meio da
criação de legislação e sistema de inspeção sanitários específicos para a
produção familiar e artesanal. Devem ser fundamentados em conhecimentos,
práticas, experiências e modos de vida dos agricultores e agricultoras,
contemplando também a diversidade cultural e alimentar que caracteriza a
produção desses alimentos”, informa o texto da carta.
A
substituição da colher de pau pela de outros materiais, como a de polietileno é
uma das modificações que mais chamaram atenção na resolução. Por isso, o
utensílio é o emblema da campanha e do Manifesto. Entre as proposições
expressas na carta está a “criação de espaços para discussão e formulação de
conceitos/definições importantes que estão na Resolução 49/2013, tais como a
classificação de risco; distinção entre in natura, semi-processado, processado
e cultura alimentar”.
As
complexas relações entre ingrediente e processos culinários constituem um rico
acervo de significados, comportamentos, afirmações, identidades e sabedoria
tradicional. Assim, a comida está associada ao pertencimento. “Creio que ouvir,
entender, respeitar e agregar tantas descobertas é uma base sensível para
organizar ‘regras’ e como empregá-las, respeitando-se diversidade, identidade,
e o sentido verdadeiro da comida, que é muito além do ato de alimentar”, aponta
Lody. A campanha, a Carta Aberta e o Manifesto fazem parte de um processo de
comunicação popular que visa ampliar o debate a respeito dos graves problemas
de saúde gerados por uma alimentação pautada no consumo de produtos
alimentícios processados, com alto teor de conteúdo publicitário, sal, gordura
e açúcar.
Essas
iniciativas também podem colaborar para a construção e efetivação de políticas
públicas, como a Política Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional. Dessa
forma, evidencia-se a necessidade de “valorizar, resgatar e disseminar práticas
alimentares e da culinária que preservem a cultura, a biodiversidade e a
autonomia das diversas regiões do Brasil”, conforme aponta a carta endereçada à
ANVISA. O autor do Manifesto Colher de Pau sinaliza que “empregar regras
sanitárias sem entender os motivos acumulados na história, na sabedoria
tradicional de povos, de segmentos étnicos é apenas uma ação “burocrática” que
distancia o verdadeiro sentimento de comida, de comensalidade e de outros
valores agregados à mesa”.
Outro ponto
de convergência é aquecer as discussões que serão postas à mesa durante a
Conferência Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional, organizada pelo
Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea), cujo tema será
“Comida de verdade no campo e na cidade: por direitos e soberania alimentar”,
prevista para acontecer em novembro em Brasília.
Ao fomentar
propostas como o Manifesto, a campanha Comida é Patrimônio vem enriquecer o
caldo dos debates que buscam aproximar as questões sanitárias pertinentes à
segurança dos alimentos com a cultura alimentar. Digamos que é o ponto certo
para “meter a colher”, como diz o ditado popular. Essa mobilização pretende
provocar reflexões e atitudes em prol da comida de verdade, bem comum,
patrimônio material e imaterial, usando arte, poesia, manifestações e
reivindicações.
Manifesto
da Colher de Pau
Pela
salvaguarda das cozinhas regionais e tradicionais do Brasil, e com
respeito aos acervos culinários que são também identificados nos conjuntos de
objetos de madeira, metal, fibra natural trançada, cerâmica entre outros;
conjuntos de objetos variados e fundamentais ao ofício de se fazer a comida e
possibilitar a preservação das receitas, e ainda preservam a estética de
cada prato e o seu serviço em diferentes espaços e ambientes sociais.
A
comida servida à mesa, em banca, sobre esteira, sobre folha de bananeira, traz
vivências das muitas experiências culturais de comensalidade nos cenários das
casas, dos mercados, das feiras, dos restaurantes, dos templos, entre tantos
outros.
Pela
segurança alimentar e principalmente pela soberania alimentar o “Manifesto
Colher de Pau” quer valorizar cada objeto, implemento de cozinha, e rituais
sociais de oferecimento de comida e bebida como forma de preservação do
exercício dos saberes tradicionais e indentitários de famílias, regiões,
segmentos étnicos, religiões; e, em destaque, a compreensão plena da
importância técnica e simbólica de cada objeto.
Assim,
morfologia, material, função, trazem memórias ancestrais que são definidoras
das peculiaridades das culturas e dos povos que são identificados em cada
objeto. Objeto vinculado ao que se entende por “patrimônio integrado” no
entendimento contemporâneo de patrimônio cultural imaterial.
Respeitar
e manter estes acervos materiais nas cozinhas, e nos serviços, garantem os
espaços de singularidade e de peculiaridade dos nossos sistemas alimentares de
brasileiros, e os acervos significativos dos sabores, da construção dos
paladares, ações que se dão no exercício das culturas.
Para
participar da campanha, acesse www.facebook.com.br/fbssan
#comidaepatrimonio
#pensamentopimenta
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