“Temos,
sim, uma ditadura do alimento...” - Vandana Shiva, física indiana.
Inimiga
nº1 dos transgênicos, física indiana denuncia ditadura da indústria alimentícia
FOLHA DE SÃO PAULO
Tatiane Ribeiro, enviada especial a Botucatu
Toni Sciarretta, de São Paulo
24/08/2013
Considerada a inimiga número um da
indústria de transgênicos, a física e ativista indiana Vandana Shiva afirma que
há uma ditadura do alimento, onde poucas e grandes corporações controlam toda a
cadeia produtiva. E dá nome aos bois: Nestlé, Cargil, Monsanto, Pepsico e
Walmart.
“Essas empresas querem se apropriar da
alimentação humana e da evolução das sementes, que são um patrimônio da
humanidade e resultado de milhões de anos de evolução das espécies”, diz.
Crítica feroz à biopirataria, Shiva
ressalta que a única maneira de combater o controle sobre a alimentação é o
ativismo individual na hora de consumir produtos mais saudáveis e de melhor
qualidade.
Leia os principais trechos da
exclusiva à Folha durante o 3º
Encontro Internacional de Agroecologia, em Botucatu.
Fábio Braga – 29.maio.2012/Folhapress
Vandana
Shiva: ― A semente é a base da comida...
É possível alimentar o planeta sem usar transgênicos?
O único modo
de alimentar o mundo é livrando-se das sementes transgênicas. Essas sementes
não produzem alimentos, mas produtos industrializados. Como isso poderia ser a
solução para fome? Só estão criando mais controle sobre as sementes. Desde
1995, quando as corporações obtiveram o direito de controlar as sementes, 284
mil fazendeiros cometeram suicídio na Índia. Nós perdemos 15 milhões de
agricultores por causa de um design de produção agrária criado para acabar com
a agricultura familiar.
Como mudar a alimentação do modelo agroindustrial para
outro baseado na produção familiar e na distribuição local?
As pequenas
fazendas produzem 80% dos alimentos comidos no mundo. As indústrias produzem commodities. Apenas 10% dos grãos de milho e soja são
comidos por pessoas; o resto é ‘comido’ pelos carros, como biocombustíveis, e
por animais. É possível elevar esses 80% para 100% protegendo a biodiversidade,
a terra, os fazendeiros e a saúde pública. É apenas por meio da agroecologia
que a produtividade agrícola pode aumentar.
Como as grandes corporações dominam a cadeia mundial de
alimentos?
Se você olha
para as quatro faces que determinam nossa comida, são todas controladas por
grandes corporações. As sementes são controladas pela Monsanto por meio dos
transgênicos; o comércio internacional é controlado por cinco empresas
gigantes; o processamento é controlado por outras cinco, como a Nestlé e a
PepsiCo; e o varejo está nas mãos de gigantes como o Walmart, que gosta de
tirar o varejo dos pequenos comércios comunitários e com conexões muito diretas
entre os produtores de comida e os consumidores. São correntes longas e
invisíveis, onde 50% dos alimentos são perdidos.
Temos sim uma
ditadura do alimento. A razão que eu viajei todo esse caminho até o Brasil é
porque eu sou totalmente a favor da liberdade alimentícia, porque uma ditadura
do alimento não é só uma ditadura. É o fim da vida.
Como as corporações chegaram a esse domínio?
Infelizmente,
o chamado livre comércio trouxe a liberdade para as corporações, mas não para
as pessoas. As corporações estão escrevendo as regras e se tornando os
governantes.
Os direitos
intelectuais acordados entre as organizações mundiais foram escritos pela
Monsanto. Para eles, o problema era que os fazendeiros estavam guardando as
sementes. E a solução que ofereceram foi dizer que guardar as sementes agora é
um crime de propriedade intelectual. É isso o que dizem as regras da OMC. A
Índia, o Brasil, a América Latina e a África deveriam dizer: ‘Você não pode
patentear a vida porque a vida não foi inventada. Pare com a biopirataria’.
Até agora, a
revisão dessas regras não foi permitida, o que mostra que essas corporações
ditam as regras. E não é apenas na OMC. A Monsanto escreveu o ato de proteção
para o orçamento nos EUA. O vice-presidente da Cargill foi designado para
escrever a lei de comércio e agricultura dos EUA.
É possível modificar esse cenário?
A única
maneira de reverter essa situação é cada pessoa fazer seu papel de recuperar a
liberdade e a democracia do alimento. Afinal, cada um de nós come duas ou três
vezes ao dia. E o que nós comemos decide quem somos, se nosso cérebro está
funcionando corretamente, ou nosso metabolismo está saudável ou, se por conta
de micronutrientes, estamos nos tornando obesos. Isso afeta todo mundo: os mais
pobres porque lhes foi negado o direito à comida; mas até os que podem comer
porque não estão comendo comida. Chamo isso de anticomida, porque a comida
deveria nos nutrir. A comida mortal que as corporações estão trazendo para nós
destrói a capacidade da comida de nos nutrir e no lugar disso está nos causando
doenças.
Cada um de nós
deve se tornar um forte ativista da liberdade da comida e das sementes no nosso
dia a dia. O que significa que temos que apoiar mais os fazendeiros e a
agroecologia. Devemos ser comprometidos com a alimentação saudável.
Qual a importância do Brasil nesse jogo?
O Brasil tem
um papel muito importante. De um lado, está uma agricultura altamente
destrutiva e irresponsável, mantida pelas corporações, levando transgênicos,
produtos químicos e piorando a fome. Do outro lado, está o modelo
agroecológico, caracterizado pela diversidade, conhecimento popular, o melhor
da ciência, e levando efetivamente comida às pessoas. Essa disputa está
ocorrendo justamente aqui, no Brasil.
Provavelmente,
o Brasil tem a maior proporção de diversidade de alimentos em sua agricultura.
No entanto, a maior parte não é usada para a alimentação humana. Por exemplo,
as plantações de cana-de-açúcar e soja vão para a alimentação de animais e para
fabricação de combustíveis.
O Brasil é
parte do que eles chamam de Brics. Eu não gosto de ‘tijolos’. Eu prefiro
plantas. Mas é um forte jogador na cena global, e os jogadores vão decidir como
os outros jogam.
Qual o papel da sociedade urbana em relação à agricultura
familiar?
É muito feliz.
Não porque eu acredito que as áreas urbanas têm mais riqueza e mais poder, mas
porque, por terem mais riqueza, têm mais responsabilidade. E porque eles
controlam a tomada de decisões, tanto em termos de governamentais como a sua
própria atitude em termos de consumo. Se eles mudassem sua postura de consumo
para longe das corporações, comprando, sim, alimentos dos pequenos produtores,
eles ajudariam não apenas o agricultor familiar, mas também ajudariam a Terra e
seus próprios corpos.
Recentemente o presidente da Nestlé afirmou que é
necessário privatizar o fornecimento da água. Quais as consequências desse
processo?
Tudo que é
essencial à vida desde o começo da história, em todas as culturas, tem sido
reconhecido como pertencente à sociedade. E isso inclui a semente, porque a
semente é a base da comida, inclui a água porque água é vida. E são esses
recursos que essas corporações gigantes querem enclausurar. Essas são as novas inclusões
comerciais. Assim como na Inglaterra, eles enclausuraram a terra, e a tiraram
dos camponeses para terem a revolução industrial.
Hoje, as
corporações gigantes estão assumindo os bens comuns que são as sementes, a
biodiversidade, a água. Quando a Nestlé diz que é necessário privatizar a água,
eles estão, obviamente, pensando na necessidade de aumentar os lucros deles.
Eles não estão pensando na necessidade dos aquíferos de serem sustentados e
recarregados, porque corporações somente podem construir uma economia
extrativa. Se eles privatizam a água, eles vão somente tirar a água para eles,
o que significa que as comunidades locais são deixadas sem água. Então é um
assalto.
As Nações
Unidas têm de reconhecer que o direito à água é um direito humano. A Coca-Cola
agora quer entrar no meu vale, um vale lindo no Himalaia, chamado Dune Valey.
Em maio nós iniciamos uma campanha porque a privatização da água por essas
empresas de engarrafamento significa, primeiro, que o direito universal à água
é destruído. O aquífero, que pertence a todos, está agora engarrafado numa
garrafa de 10 rupis que pode é acessível só aos ricos. Os pobres bebem apenas
água contaminada.
A segunda
coisa é que ela destrói água, e eu não sei por quanto tempo essa mineração
poderá aguentar. A terceira é que ela polui. Sobram poucas fontes de águas
puras, e, se eles realmente se importassem, deveriam limpar o pouco que sobra,
ao invés de roubar o que resta limpo. Isto é roubo de água e, portanto, um
crime contra a humanidade.
Essa
dependência da Coca-Cola é um dos vícios da vida moderna. Nós temos muito mais
bebidas saudáveis. Na Índia, começamos uma campanha para as avós
ensinassem aos seus netos as bebidas geladas que elas costumavam fazer. Somos
um país tropical, sabemos como transformar qualquer fruta em uma bebida
saborosa: um suco de manga crua, que é ótimo para prevenir insolação, uma
mistura maravilhosa de sete grãos, que é como uma refeição completa e, se
tomada no café da manhã, você não precisa de mais nada. As bebidas venenosas que
são vendidas pela Nestlé e pela Coca-Cola roubam o nosso dinheiro, a nossa água
e a nossa cultura.
Qual é a forma alternativa à globalização?
Originalmente,
o livre comércio deveria reconhecer a liberdade de todas as espécies e por isso
não destruiria nenhuma espécie nem ecossistema. Originalmente, o livre comércio
reconheceria os direitos dos camponeses e dos povos indígenas e, por isso, não
iria cortar as raízes. Reconheceria também os direitos dos pequenos
agricultores familiares e iria cuidar para que existam preços justos, ao invés
de tentar debilitar o preço por meio de dumping e jogando fora os produtos.
Um verdadeiro
livre comércio seria a liberdade para as pessoas e não a liberdade para as
corporações. O que nós temos agora é uma corporatização global com uma
negligência total, uma destruição negligente e desatenta. O que precisamos é
uma consciência livre que esteja profundamente ciente de nossa interconexão com
outras espécies, outras culturas e com toda a humanidade. Temos que ser
conscientes do dano que fazemos aos outros. Dessa forma, não vamos incrementar
o tamanho de nossa pisada ecológica, mas vamos a reduzi-la.
E, na
alimentação, a única forma em que você pode reduzir sua pisada é de mudar de
agroindústria para agroecologia, mudar da distribuição global para distribuição
local, mudar de um sistema violento, que depende do governo corporativo, para
um sistema pacífico, que depende da comunidade e da solidariedade. No momento
em que mudamos para isso, a pisada se reduz. Podemos ir do industrial e global
para ecológico e local.
Como acelerar o processo de alinhamento entre os vários
movimentos para um estilo de vida mais sustentável?
Agroecologistas,
camponeses e agricultores familiares são, na minha opinião, os maiores,
protetores do planeta. É o momento de os movimentos ecológicos perceberem que
os verdadeiros ambientalistas são os agricultores, que realmente reconstroem o
solo, que fazem o cultivo de uma forma que os besouros não sejam mortos, que
protegem a água.
E o movimento
pela saúde tem que perceber que os agricultores são os médicos, que fazer
crescer comida saudável é a melhor contribuição que podemos fazer. No momento
em que fazemos essas conexões, existe uma nova vida, porque a vida cresce por
meio de inter-relações.
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