sábado, 7 de abril de 2012

OS SISMOS DE GULNAZ

Foto: Divulgação

Gulnaz: — Quando a minha mãe saiu para ir a um hospital, ele entrou em minha casa e trancou as portas e as janelas. Comecei a gritar, mas ele colocou as mãos sobre a minha boca. (...) O meu estuprador destruiu o meu futuro...


O depoimento acima foi apenas um extrato da entrevista concedida à rede CNN em novembro de 2011. À ocasião, a entrevistada – para resguardar a sua identidade, a imprensa internacional limita-se a chamá-la apenas de Gulnaz –, estava cumprindo uma pena de dois anos por um crime que não cometeu, ou seja, ela havia sido estuprada – fato, inclusive, que deu início a uma dramática história (para não dizer surrealista). Enfim! Enclausurada numa prisão de Cabul, a cidade mais populosa do Afeganistão e a capital do país, localizada num belíssimo vale, embora vulnerável a terremotos, Gulnaz remeteu-nos ao ano de 2009, contando que, à época, com 19 anos de idade, estava sozinha em casa quando um homem, que conhecia a sua rotina, entrou e fechou portas e janelas. Acuada, ela reagiu gritando, clamando por socorro. Em vão, já que o recém-chegado logo a fez calar, tapando a sua boca com as mãos. Indefesa, sem meios para reagir, ela foi violentada sexualmente. Em seguida, como se nada tivesse acontecido, o homem foi embora – só que deixou rastros...



Segundo capítulo


O tempo passou – ele sempre passa – e, para sua perplexidade, desespero e estagnação, Gulnaz teve a primeira das inúmeras ânsias de vômitos que, não demoraria muito, juntamente com outros sinais a indicar que algo estava acontecendo, denunciariam a sua gravidez. O estupro, por sua vez, que, até então, havia sido guardado a sete chaves por ambos – ela e o seu agressor –, foi obrigado a sair do baú e, como previa Gulnaz, causou um triplo constrangimento familiar, já que, além de grávida, a gravidez foi decorrente de uma violência sexual e o agressor – detalhe – era casado com uma prima sua – não esquecendo que a complexidade dos fatos desencadeou graves e inevitáveis consequências, mas apenas porque a vítima vivia e continua vivendo num país onde 99% da população são muçulmanos. Nesse caso, partidários do islamismo, que, no Afeganistão – berço, inclusive, do radicalismo islâmico armado –, impôs um regime calcado no puritanismo, no conservadorismo e na repressão, sequer reconhecendo o direito à cidadania do seu povo, que, aliás, nada mais é que uma trupe de marionetes manipuladas ao bel prazer dos governantes do país. Isso sem falar que a legislação do Afeganistão, tal qual a de demais países mulçumanos – o Marrocos, por exemplo –, pode ser considerada uma reprodução fiel de muitas das passagens do Alcorão. Afinal, o livro dito sagrado por aqueles que oram na sua cartilha apenas acoberta o que há de mais degradante na natureza humana, negando, sobretudo, o direito das mulheres a terem direitos, inclusive o de se defender de algo que não fez – no caso em questão, o direito de Gulnaz a se defender de uma legislação opressora, já que a acusou de ter cometido um crime que não cometeu. Ora, convenhamos! O criminoso da história foi o homem que a estuprou. Assim, ao invés de se sensibilizar com o drama de Gulnaz, a legislação mulçumana só abriu os braços para assinar a sua sentença, que foi a de condená-la a doze anos de prisão por “adultério forçado” – alguém, por acaso, seria capaz de me explicar o que representaria isso no contexto em que seu deu o fato em questão, que foi o estupro sofrido pela jovem, pouco importando se o agressor era ou não casado e que, vale salientar, premeditou o crime? Desse modo, além de alienada, a condenação de Gulnaz por ter supostamente seduzido um homem casado tornou-se ainda mais obscena do que o estupro em si. O seu agressor, por sua vez, foi igualmente condenado à pena de doze anos de prisão. Ponto final? Que nada! Esse foi apenas o final do segundo capítulo da história.



Terceiro capítulo


O tempo novamente tornou a passar – é sempre assim – quando, já na prisão, Gulnaz deu à luz a uma menina, bem como, para sua surpresa, tomou conhecimento de que a sua pena havia sido reduzida para três anos, mas apenas porque o seu caso repercutiu no mundo inteiro. E a seu favor. Só que como a insensatez anda a galope – aliada, então, à crueldade! –, podendo causar um estrago sem precedentes na vida de um infeliz, não tardou para que Gulnaz fosse burocraticamente comunicada que a sua pena poderia ser retirada e ela consequentemente libertada caso concordasse em se casar com o homem que a estuprou e a engravidou. Sim, simples assim, como se fosse a coisa mais normal do mundo. O agressor, por sua vez, tudo indica – as informações divulgadas pela imprensa são discrepantes nesse e noutros sentidos –, teria tido a sua pena reduzida a sete anos. Enfim! No dia 1º de dezembro de 2011, provavelmente por ter sido pressionado internacionalmente, o presidente do Afeganistão Hamid Karzai concedeu indulto à Gulnaz – engana-se quem pensa que o perdão foi uma boa ação de um homem cujo coração (se é que ele tem um) é mais empedernido do que bala de canhão. Na verdade, o que aconteceu foi um toma-lá-dá-cá, um acordo entre ambas as partes. Resumindo: Para ter a filha – fruto de um estupro – reconhecida pela legislação afegã, voltando, assim, automaticamente, a ser uma mulher “honrada” perante sociedade – quanta sandice! –, Gulnaz teria de se casar com o seu agressor, ou seja, com o homem cuja maldade não se limitou à violência sexual, já que fez de um desavisado espermatozoide cúmplice do seu ato ignóbil. Caso contrário, a vítima seria obrigada a se desfazer da filha para que ela fosse adotada sabe-se lá por quem – engana-se quem igualmente pensa que casos como o de Gulnaz não são comuns. Pelo contrário! São mais do que frequentes: eles são recorrentes, o que só reforça a verdade inconteste de que, no Afeganistão, a mulher é tratada como se fosse sinônimo de escória, de um ser, digamos, de quinta categoria, embora, sem ela, como poderiam os lunáticos que governam o país reproduzirem réplicas de si mesmo, na maioria dos casos, inclusive, réplicas pioradas?



Quarto capítulo


Retomando, contudo, à entrevista que Gulnaz concedeu à rede CNN em novembro de 2011... Em seu depoimento, ela revela ainda que, desde o dia em que foi estuprada, continua a sentir o odor asqueroso do seu agressor e que só permaneceu com a filha por ela se constituir em uma prova da sua inocência. Porém, apesar de muitas mentes lúcidas não discordarem disso, ou seja, da sua inocência, um sem fim de mentes obtusas, sobretudo as que se guiam pela ótica do islamismo, vão até o fim dos seus dias acreditando piamente que Gulnaz seduziu um homem casado, cometendo um crime moral, e que, com ele, gerou uma filha. Tanto que, por isso, já foi inclusive ventilada a possibilidade de Gulnaz correr risco de vida. Consciente, portanto, da gravidade da sua situação, ela disse que, ao se casar com o seu estuprador, exigirá que ele faça uma das suas irmãs se casar com um dos irmãos dela – prática essa, aliás, conhecida como baad, uma forma tribal de resolução de litígios, embora, nesse caso específico, seria também uma apólice de seguro para Gulnaz, visto que, caso o seu estuprador porventura pensasse em voltar a machucá-la, mesmo que na condição de marido, ele obviamente hesitaria, considerando que uma das suas irmãs estaria de igual modo à mercê de um dos irmãos da mulher com quem optou se casar. Nossa! Que cultura bizarra... Não podemos, contudo, nos esquecer de dizer que, durante o calvário de Gulnaz, um documentário patrocinado pela União Europeia - UE foi realizado com o objetivo de denunciar para o mundo a situação ultrajante da mulher afegã através de depoimentos de três vítimas – uma das quais Gulnaz – da legislação do Afeganistão. Curiosamente, após a sua finalização, o lançamento do filme foi proibido pela própria EU – proibição essa justificada pelo embaixador do referido bloco econômico para o Afeganistão, Vygaudas Usackas, por dois motivos: a possibilidade da exibição do documentário expor ainda mais ao perigo não somente as mulheres afegãs como um todo, mas, sobretudo, as depoentes que dele participaram. O segundo motivo, que deixou estarrecidos os produtores, mesmo porque eles chegaram a investir mais de US$ 60 milhões em diferentes programas de apoio para as mulheres que prestaram os seus depoimentos, teria sido o fato de que elas não autorizaram por escrito a sua participação no filme. De qualquer modo, segundo um e-mail enviado por um simpatizante do projeto ao jornal The New York Times, tudo indica que a UE proibiu o lançamento do documentário simplesmente por razões políticas.



Conclusão


Mulheres afegãs protestam nas ruas a favor dos seus direitos.


O casamento de Gulnaz com o seu algoz poderia até ser considerado por muitos como uma ironia sem graça do destino. Que nada! O filme de terror protagonizado por Gulnaz é apenas mais uma versão da realidade surrealista que, no seu cotidiano, as mulheres afegãs têm de se confrontar. Ocorre que, apesar de nefasta, sendo inclusive criticada em muitos aspectos pela Organização das Nações Unidas - ONU, a legislação do Afeganistão não prevê mudanças – nem em longo prazo – que beneficiem o sexo feminino no país. Fazer o quê? O fato é que o Afeganistão continua sendo o pior país do mundo para as mulheres – o pior dos pesadelos –, mas, como se diz por lá: — Tudo em nome de Allah...


Nathalie Bernardo da Câmara






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