quinta-feira, 14 de junho de 2012

AUTÓPSIA DAS SOMBRAS: — ABRE-TE, SÉSAMO!

“O Levante cumpre um papel importante de busca da verdade de fatos escabrosos que aconteceram na ditadura militar e os escrachos acabam por substituir a justiça que o Supremo Tribunal Federal (STF) deveria ter feito e não fez, ao decidir que torturadores estão sob o abrigo da Lei de Anistia...”.

Wadih Damou
Presidente da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB/RJ), elogiando a atitude dos jovens nos esculachos populares que eles têm promovido no país, denunciando a impunidade de torturadores e criminosos da ditadura militar (1964 - 1985), visando sensibilizar a sociedade para que a Comissão Nacional da Verdade possa ter a garantia da liberdade necessária para realizar o seu trabalho e alcançar os seus objetivos. No dia 5 deste mês, na sede da OAB/RJ, Wadih Damou recebeu ativistas do Levante Popular da Juventude (LPJ) que, além de manifestarem a sua intenção de colaboração com a Comissão Nacional da Verdade, foram pedir o apoio e o respaldo preventivos da instituição nas suas ações, tendo em vista que, durante a Cúpula dos Povos, que acontecerá de 15 a 23 deste mês, no Rio de Janeiro, o LPJ pretende realizar um grande ato de repúdio contra responsáveis por torturas e crimes ocorridos durante o regime militar no Brasil, bem como se precaverem de eventuais represálias, já que muitos dos seus integrantes estão tendo as suas vidas investigadas por parte daqueles que o movimento está denunciando à população brasileira pelos atos vis que eles cometeram no passado, mas que, mesmo assim, continuam livres, leves e soltos, ou seja, impunes. Os militantes do LPJ, por sua vez, esperam que a Comissão Nacional da Verdade não somente consigam obter informações sobre o paradeiro dos restos mortais de desaparecidos políticos para que, enfim, eles possam ser identificados, mas também exigem que os torturadores e demais responsáveis, direta ou indiretamente, pelas torturas sejam julgados e finalmente punidos.


Há um mês, no dia 14 de maio, o LPJ realizou diversos atos públicos contra torturadores e agentes da repressão da ditadura militar em várias cidades do país. Segundo uma matéria publicada no site Brasil de Fato, os atos, ou melhor, os esculachos basearam-se “na denuncia de ex-agentes que participaram direta ou indiretamente de ações de tortura na época e em frente a prédios que serviam para tais fins, como o Departamento de Ordem Política e Social (Dops) e o Destacamento de Operações de Informações – Centro de Operações de Defesa Interna (DOI-Codi)”. Os escrachos populares, como também têm sido chamados os atos públicos de denúncias, foram os primeiros ocorridos após o anúncio, no dia 10, pela Presidência da República, dos nomes dos integrantes da Comissão Nacional da Verdade, que, no geral, como já foi dito numa postagem deste blog, irá apurar violações aos direitos humanos entre 1946 e 1988 no Brasil – incluso, portanto, o período da ditadura militar. Dois dias depois, portanto, ou seja, no dia 16, la presidenta Dilma Rousseff instalou oficialmente a Comissão Nacional da Verdade. De acordo, ainda, a referida matéria, “os jovens condenam a movimentação dos setores conservadores dentro e fora das Forças Armadas que não aceitam a democracia e não admitem a memória, a verdade e a justiça, desrespeitando a autoridade da presidenta Dilma Rousseff e ministros de Estado, como no manifesto Alerta à nação”, emitido por militares que, diga-se de passagem, não é que um manifesto de teor nazista daqueles que resistem que a face sombria do regime militar no Brasil venha à tona e que os responsáveis paguem por seus crimes. Na verdade, como publiquei no dia 31 de março do corrente, na postagem Sombras do passado... (http://abagagemdonavegante.blogspot.com.br/2012_03_01_archive.html), o título completo do referido manifesto é Alerta à nação: eles eu venham. Por aqui não passarão. E o que aconteceu foi mais ou menos assim...

 


Publicado na imprensa no dia 5 do mesmo mês, “a nota de repúdio” foi assinada por militares da reserva, que protestaram contra a “retirada, por ordem do ministro da Defesa Celso Amorim, de um manifesto assinado e postado no site Clube MilitarA Casa da República no dia 16 de fevereiro deste ano. A ordem, portanto, para a retirada do referido manifesto do site mencionado deu-se em função das críticas nele contidas à Comissão Nacional da Verdade, além das exigências feitas à la presidente Dilma Rousseff para que ela advertisse a ministra-chefe da Secretaria dos Direitos Humanos, a pedagoga Maria do Rosário, e a ministra-chefe da Secretaria de políticas para as Mulheres, a socióloga Eleonora Menicucci, por ambas criticarem o período no qual o Brasil viveu sob a égide da famigerada ditadura militar. (...) E não é para criticar? Afinal, como se já não bastasse a caduquez impressionante do próprio Clube Militar, fundado no dia 26 de junho de 1887, o manifesto aparentou ser fruto de um delírio surrealista coletivo. Bom! O fato é que, na nota divulgada, os militares da reserva não somente reafirmaram, ‘em uníssono’, a validade do conteúdo do manifesto, bem como disseram que não reconhecem ‘qualquer tipo de autoridade ou legitimidade’ vindas do ministro Celso Amorim”.

Ocorre que, apesar do trabalho da Comissão Nacional da Verdade abranger um vasto período de tempo, ou seja, de 1946 a 1988, a comissão irá priorizar a fase da ditadura militar, ou seja, de 1964 a 1985, revisando, como já foi dito noutra postagem, as condutas de agentes públicos do Estado, “não importando o seu status” (...), “se uma autoridade considerada de primeira grandeza ou o mais medíocre dos seus subalternos”, os vis torturados e todos aqueles que, de certa forma, direta ou indiretamente, “foram coniventes com os atos bárbaros cometidos por tão nocivo e pernicioso regime” – regime esse que impuseram ao povo brasileiro e cujo legado de sangue não é ainda nem de longe uma página virada na História do Brasil. Desse modo, o LPJ, que data dos idos de 2006, no Rio Grande do Sul, mas que apenas em 2010 teve iniciado o seu processo de nacionalização em diversos estados, tem como objetivo, segundo Paulo Henrique Lima, um dos seus militantes, em declaração no dia 31 de maio à Agência de Informação Frei Tito para a América Latina (ADITAL), fazer com que “a juventude se torne protagonista de um projeto de transformação estrutural da sociedade brasileira, que contemple tanto as demandas específicas da juventude, mas também as demandas de todo o povo brasileiro”. Para o ativista, “acreditamos que os escrachos/esculachos realizados pelo Levante a nível nacional foi um novo marco na luta da juventude brasileira. Contrariando todos os teóricos do marasmo e do imobilismo, nossa ação evidenciou uma das maiores contradições da sociedade brasileira nos últimos 30 anos, a impunidade de agentes de estado comprometidos com a Ditadura Militar e o assassinato, o desaparecimento e a tortura de vários militantes sociais”. Uma dessas contradições, em sua opinião, é, inclusive, a “de vivermos numa sociedade dita democrática, mas marcada por traços absolutamente autoritários”.

E é exatamente essa sociedade democrática – nem que seja aparente – que está garantindo a promoção dos esculachos populares contra, por exemplo, muitos torturadores que continuam vivos, normalmente diante das suas residências, exigindo por justiça e, ao mesmo tempo, ridicularizando-os perante a sociedade. Segundo informações divulgadas no site do LPJ no dia 14 de maio deste ano, o tenente-coronel reformado Maurício Lopes Lima, reconhecido pela hoje presidenta Dilma Rousseff por estar sempre presente durante as sessões de torturas as quais ela era submetida, “foi apontado pelo Ministério Público Federal (MPF), em ação civil pública ajuizada em novembro de 2010, como um dos responsáveis pela morte ou desaparecimento de seis pessoas e pela tortura de outras 20 nos anos de 1969 e 1970”. À época, ele chefiava a equipe de busca e era orientador de interrogatórios da Operação Bandeirante (Oban) e do DOI-Codi – funções que ocupou entre outubro de 1969 e o primeiro bimestre de 1971.

 


Em entrevista ao jornal A Tribuna de Santos, em 2010, o militar reformado Maurício Lopes Lima nega ter torturado qualquer preso, incluindo a presidenta, mas admite que a tortura era um procedimento comum à repressão e declarou: “Eu sou uma testemunha da tortura. Sim, eu sou. (…) A tortura, no Brasil, era uma coisa comum...”.

Um dos escrachos, portanto, que mais gerou repercussão no dia 14 de maio foi exatamente o realizado defronte o edifício onde mora o militar reformado Maurício Lopes Lima, responsável pelas torturas infligidas àquela que viria a ser a sua mais famosa vítima, embora, à época, uma das lideranças da organização guerrilheira Vanguarda Armada Revolucionária Palmares (VAR-Palmares), que, com apenas 22 anos de idade, foi presa no dia 16 de janeiro de 1970.

 
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Rua Teresa Moura, nº 36, ap.23A, bairro das Astúrias, no Guarujá, São Paulo. Atual endereço do tenente-coronel reformado Maurício Lopes Lima.


E, para quem ainda não o sabe, as torturas sofridas por Dilma Rousseff não foram poucas. Além das torturas psíquicas e morais, havia também as físicas (palmatória, pau-de-arara e choques-elétricos – toda sorte de maus-tratos), sem falar que, além de ter um dente quebrado, ela sofreu mais de uma hemorragia, todas graves – motivo pelo qual fez algumas visitas ao Hospital Central do Exército e ao Hospital das Clínicas.



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Foto de Dilma Rousseff em interrogatório num Tribunal Militar no dia 18 de maio de 1970, publicada pela revista Época em dezembro de 2011 – a imagem é uma das que ilustram o livro A Vida quer é coragem, do jornalista brasileiro Ricardo Amaral, lançado no mesmo mês, sobre a trajetória pessoal da atual presidenta do Brasil.


O irônico da fotografia acima é o fato da interrogada ser quem hoje é, mas o curioso mesmo é a postura esquiva dos militares presentes ao interrogatório da então subversiva Dilma Rousseff, que, pelo menos aparentemente, em nada se diferenciava dos demais militantes de esquerda com os quais eles já haviam se confrontado antes e ainda viriam a se confrontar. Daí não haver motivo para estarem escondendo os seus rostos, ocultando, de certa forma, a sua identidade. Ou seriam adivinhos, prevendo o futuro que, lá na frente, ou seja, atualmente, estariam os esperando? A interrogada, por sua vez, que, até então, tinha como endereço certo o presídio Tiradentes, em São Paulo, mesmo já tendo sido submetida a 22 dias de torturas até o momento do interrogatório em questão, não demonstra receio algum. Pelo contrário! A altivez e brio das suas feições sóbrias, olhando de frente para quem a julgava, podendo, inclusive, ser remarcado certo desafio na ousadia do olhar, são de um contraste crasso em relação à covardia dos militares. Não foi à toa, portanto, que, em entrevista concedida ao jornalista Luiz Maklouf Carvalho em 2003, mas publicada pelo jornal Folha de S. Paulo apenas no dia 21 de junho de 2005, Dilma Rousseff disse uma frase que, analisando todo o contexto durante o qual o Brasil foi submergido pela ditadura militar, não deixa de ser, pelo menos para mim, emblemática, ou seja: “O que nos caracteriza é ter ousado querer um país melhor...”.

De acordo, ainda, com o site do LPJ, outros nomes, além do militar reformado Maurício Lopes Lima, “citados pelo MPF são os também militares reformados Homero Cesar Machado, Innocencio Fabricio de Mattos Beltrão (ambos do Exército) e João Thomaz (capitão reformado da Polícia Militar). Se a ação for declarada procedente, os quatro serão responsabilizados por torturas e mortes, terão de indenizar as vítimas (entre elas, Dilma) e as suas aposentadorias poderão ser cassadas”. Que assim o seja! De qualquer modo, no esculacho de 14 de maio, uma personagem em especial, ou melhor, uma persona non grata na historiografia do Brasil voltou à cena desde o dia 7 de abril, em São Paulo, quando foi lançada a Frente de Esculacho Popular, que foi o médico Harry Shibata, mais conhecido como o legista da ditadura – ocasião em que os manifestantes colaram mais de 800 cartazes nos postes da região onde mora o aposentado, alertando para o alto grau de periculosidade de um dos seus residentes.



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Segundo o jornalista brasileiro Fábio Nassif em matéria na versão eletrônica da revista Carta Maior, divulgada dias após o escracho:

— Enquanto os militares torturavam, matavam e desapareciam com corpos de militantes, Shibata assinava laudos falsos, afirmando que eles haviam cometido suicídio ou sofrido algum acidente. (...) Considerado como uma peça importante na “engenharia da amnésia” montada pelo estado brasileiro naquele período, Shibata é um falsificador da história do país, segundo as denúncias dos manifestantes. O médico ensinava técnicas de tortura que não deixassem marcas, usadas até hoje por órgãos de repressão.

 
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Rua Zapara, nº 81, em Alto de Pinheiros: residência de Shibata e destino dos manifestantes após a colagem dos cartazes preventivos em relação ao morador de passado sombrio, em completa dissonância com o charme do bairro.


Afinal, para quem até hoje defende o tratamento degradante e desumano dispensado pelos militares a todos os que por eles eram pejorativamente considerados subversivos, melhor tratamento de choque não poderia haver que a do escracho popular batendo a sua porta. De acordo com uma reportagem da revista Época, publicada no dia 17 de maio de 1999, Harry Shibata foi diretor do Instituto Médico Legal (IML) de São Paulo de 1976 a 1983. Durante, contudo, os “três anos à frente do IML, as gavetas metálicas guardavam os corpos daqueles que não resistiam às torturas no Dops ou no DOI-Codi”. No entanto, “as circunstâncias em que aconteciam essas mortes nunca eram retratadas com fidelidade. Os laudos de exames necroscópicos falavam em misteriosos atropelamentos, suicídios e resistência armada contra os órgãos de repressão militar. Muitos desses laudos não passavam de embuste”, sendo a sua carreira, portanto, amparada por pareceres duvidosos. Porém, diante do peso de tantos anos de chumbo, citarei aqui apenas dois casos, que, apesar de já conhecidos, sempre vale a pena serem lembrados.

Não para que sejam novamente sentidas as perdas de seres humanos inocentes e de maneira tão bárbara, mas que não sejam esquecidas as atrocidades cometidas por um regime comandado por verdadeiros doentes mentais – cada um com os seus males –, sendo, desse modo, baseado na maldade, na covardia e na fraude. E em todos os sentidos. Só que, no caso em questão, um regime expert em forjar a causa da morte daqueles que, por convicção, tentavam combatê-lo, ou melhor, literalmente derrubá-lo. Falando nisso, no depoimento do ex-sargento Marival Dias Chaves do Canto à revista Veja, publicado no dia 18 de novembro de 1992, o povo brasileiro toma conhecimento sobre as farsas divulgadas a respeito do destino de inúmeros presos políticos. Uma delas, por exemplo, eram os chamados teatrinhos. De acordo com Marival Chaves, “o preso morto era levado para um local público, onde equipes do DOI simulavam um tiroteio com mortes. Na hora de levar o ‘corpo’ para o IML, faziam-se substituições. O agente que se fingiu de morto era substituído pelo corpo do preso. No IML o legista Harry Shibata e outros legalizavam a morte em combate”. Teria sido o que, supostamente, aconteceu com dois militantes da Ação Libertadora Nacional (ALN), o mineiro Antônio Carlos Bicalho Lana, estudante secundarista, e a carioca Sônia Maria Lopes de Moraes Angel Jones, professora da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).

Segundo os laudos das duas mortes, assinadas no dia 30 de novembro de 1973 por Shibata, que, aliás, costumava trabalhar em conjunto com demais legistas, o casal havia recebido voz de prisão de um órgão de segurança qualquer e, ao invés de se entregar, iniciou um tiroteio e foi atingido, falecendo a caminho do hospital. No caso de Antônio Carlos Bicalho Lana, o legista Paulo Augusto Queiroz Rocha também estaria envolvido no laudo da sua morte, enquanto que, em relação à Sônia Maria Lopes de Moraes Angel Jones, o legista que acompanhou Shibata no laudo da militante teria sido Antônio Valentini. Ocorre que, na versão de Marival Chaves, o paradeiro do casal citado teria vindo à tona por um dos cachorros – agentes do Estado infiltrados numa dada organização ou até mesmo militantes de um partido, que, por razões diversas, tornavam-se delatores dos seus próprios companheiros. Assim, capturados, Antônio Carlos Bicalho Lana e Sônia Maria Lopes de Moraes Angel Jones foram parar num sítio que o DOI mantinha na região sul de São Paulo, onde “foram torturados e assassinados com tiros no tórax, cabeça e ouvido. Os cadáveres foram colocados no porta-malas de um carro e levados até o bairro de Santo Amaro, na Zona Sul de São Paulo. Ali, encenou-se a farsa do tiroteio para simular a morte deles”.

O nome do cachorro que entregou o casal? Segundo Marival Chaves, “João Henrique Ferreira de Carvalho, o ‘Jota’, da ANL, (...) citado pela antiga Escola Nacional de Informações como modelo de infiltrado”. De acordo, ainda com as próprias palavras do ex-sargento, teria sido o Jota que “deu o tiro de misericórdia na ALN”, bem como noutras organizações de esquerda com as quais ela mantinha relações.



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Enfim! Como explicar, por exemplo, a versão dita oficial de que tanto Antônio Carlos Bicalho Lana e Sônia Maria Lopes de Moraes Angel Jones teriam falecido em decorrência do tiroteio que ambos, hipoteticamente, haviam provocado, quando, anos depois, os restos mortais da militante foram encontrados numa cova individual do cemitério Dom Bosco, em São Paulo, sendo, após a sua exumação, descoberto que não havia nenhum indício de tiro em parte alguma da sua ossada, sequer no crânio, como havia atestado o laudo médico do legista Harry Shibata? O fato, mais o fato real, segundo o jornalista Fábio Nassif, é que Sônia Maria Lopes de Moraes Angel Jones fora estuprada e barbaramente torturada. E, detalhe: teve arrancados os seus seios... Assim, se, à época, idos de 1975, ano da exumação do corpo da professora, com o laudo conclusivo da verdadeira causa da sua morte, se, até então, Shibata ainda não havia sido desmascarado, ou mesmo se já ventilavam suspeitas a respeito, como sendo o que ele realmente era, ou seja, um farsante, não havia mais, diante dos fatos, como querer negar uma prática por ele considerada comum – quiçá irrelevante –, vindo à tona, portanto, o seu nada idôneo caráter.

E tal descoberta só possível porque, de acordo com o Centro de Documentação Eremias Delizoicov e o Dossiê dos mortos e Desaparecidos Políticos no Brasil, existia no cemitério Dom Bosco, construído pela prefeitura na periferia de São Paulo em 1971, uma vala clandestina de nome Perus, na qual, quando aberta no dia 4 de setembro de 1990, “foram encontradas 1.049 ossadas de indigentes, presos políticos e vítimas dos esquadrões da morte”. A história fica ainda mais bizarra porque, além da construção do cemitério ter ocorrido durante uma das gestões – todas questionáveis – do empresário, engenheiro e político Paulo Maluf, a implantação – já naquela época – de um crematório fazia parte do projeto original da edificação – informação que, inclusive, despertou estranheza e suspeitas até da empreiteira chamada para construí-lo. O fato é que, no início, o cemitério “recebia cadáveres de pessoas não identificadas, indigentes e vítimas da repressão política”, sendo a ideia do crematório, aparentemente reservado apenas aos ditos indigentes, abandonada em 1976, ano em que as ossadas exumadas em 1975 e que “foram amontoadas no velório do cemitério”, tiveram outro destino: a chamada Vala de Perus.

Finalizando, a ossada de Antônio Carlos Bicalho Lana também foi encontrada numa cova individual no mesmo período em que foi localizado o da sua companheira, bem como, vale registrar, a do mineiro Hélber José Gomes Goulart, morto, aliás, praticamente nos mesmos moldes dos outros dois. E, segundo a sua ficha pessoal, preenchida com esmero por agentes de órgãos da repressão da ditadura militar, exatamente no mesmo ano, ou seja, em 1973, apesar de no mês de setembro. E apenas porque, a exemplo de muitos outros, era um subversivo, inicialmente da ANL, de acordo com a tal ficha, e, posteriormente, do Partido Comunista Brasileiro (PCB). Além disso, outra particularidade envolvendo a morte dos três militantes foi a assinatura do laudo das suas respectivas causas, ou seja, a do legista Shibata. Só que, no caso de Hélber José Gomes Goulart, quem então assessorava Shibata era o também legista Orlando Brandão. Ocorre que, em meio a todos esses desdobramentos, é morta, de maneira suspeita, envolta num manto de mistérios, num acidente de carro, a estilista brasileira Zuzu Angel (1921 - 1976), mãe do estudante universitário e militante do Movimento Revolucionário 8 de Outubro (MR-8) Stuart Angel Jones, preso por argentes da insegurança nacional no dia 14 de junho de 1971 e nunca mais visto.

O drama, aliás, vivido pela mãe inicialmente à procura do paradeiro do filho e depois do destino dado ao seu corpo foi transformado no filme Zuzu Angel (2006) pelo cineasta brasileiro Sérgio Rezende, cabendo à atriz brasileira Patrícia Pillar interpretar a estilista e o ator brasileiro Daniel de Oliveira fazer o papel de Stuart Angel Jones, que, na vida dita real, antes de morrer, era casado com Sônia Maria Lopes de Moraes Angel Jones – recomendo o filme, apesar da imensa dor que ele nos faz sentir diante das cenas fortes retratando atos hediondos que, se fosse o caso, só poderiam ser justificados se praticados por monstros. O pior, contudo, é que foi o caso... Resumindo: Stuart Angel Jones foi torturado e assassinado no mesmo dia do da sua prisão. A morte de Zuzu Angel? Provocada por agentes repressores da ditadura militar.


Falando em monstros...

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“Nós fugimos do nazismo e escolhemos o Brasil por que achávamos que era um país de liberdade...”.

Zora Herzog (in memoriam)
Mãe de um único filho, Vladimir Herzog, que, filósofo por formação, mas jornalista por vocação, professor de jornalismo na Universidade de São Paulo (USP) e dramaturgo, nasceu na Iugoslávia, mas foi naturalizado brasileiro. No dia 24 de outubro de 1975, Vlado, o seu nome original – apenas os parentes e amigos o chamavam assim –, estava na TV Cultura, onde trabalhava, quando foi surpreendido por dois agentes dos ditos órgãos de segurança nacional com ordens de detê-lo para supostamente prestar esclarecimentos sobre as suas atividades políticas – ele era militante do PCB. Porém, ligando para o coronel José Barros Paes, então comandante da 2ª Seção do Estado-Maior do II Exército, o jornalista Paulo Nunes terminou acertando que a prestação dos tais esclarecimentos por Herzog ficaria para a manhã do dia seguinte. O que, de fato, aconteceu, já que, às 8h, o jornalista apresentou-se na sede do DOI-Codi, na Rua Tutóia, nº 1030, no bairro do Paraíso, em São Paulo. A questão, contudo, como a maioria o sabe, é que os esclarecimentos solicitados nem mesmo chegaram a acontecer. Afinal, mal se apresentou, Herzog foi detido, com direito, inclusive, a macacão de preso, encapuzado, interrogado, torturado, inclusive com choques elétricos, e – nenhuma surpresa – barbaramente assassinado. Ou seja, mais um a fazer parte da já então extensa e ascendente lista de mortos e desaparecidos durante a ditadura militar no Brasil. No caso de Herzog, tudo num só dia: 25 de outubro de 1975. E ele tinha apenas 38 anos de idade... Hoje, se vivo, Herzog faria 75 anos no próximo dia 27.


Dizem que o hábito faz o monge. Então! Não demorou muito, na manhã do dia seguinte, uma nota dita oficial – obviamente fraudulenta – emitida pelo comado do II Exército anunciou que, após prestar depoimento etc e tal, o jornalista Vladimir Herzog havia se suicidado... O laudo da causa da morte? “Asfixia mecânica por enforcamento...”. O legista, ou melhor, os legistas, ao todo três? Arildo de Toledo, Armando Canger Rodrigues e Harry Shibata, que, mero e insignificante detalhe, sequer viu o corpo... Enfim! De acordo com a revista Época (17 de maio de 1999), “atrelada ao laudo, forjou-se também uma fotografia [de Herzog enforcado]. Uma década depois, a União reconheceria a farsa. Herzog fora assassinado”. E por trauma craniano, decorrente das torturas que sofreu. Daí que, quando a JLP decidiu lançar a Frente de Esculacho Popular no dia 7 de abril, pegou como gancho aquele que é considerado o ícone da resistência à ditadura militar, ou seja, o jornalista Vladimir Herzog, e, como contraponto, aquele que é rotulado pejorativamente de o legista da ditadura, que é o médico Harry Shibata, cujos crimes, pelo menos para quem tem discernimento, são, no quesito gravidade, sem tirar nem pôr, nivelados, por exemplo, aos dos torturadores, bem como, melhor dizendo, aos de todos os que compunham o aparato policial e repressor do regime dos militares, igualmente inclusos nesse entendimento. Só que, agora, vejamos o que realmente aconteceu a partir de depoimentos, sobretudo do jornalista e escritor brasileiro Rodolfo Konder, que, aliás, já estava preso, na sede do DOI-Codi de São Paulo, juntamente com demais colegas de profissão, a maioria ligados ao PCB, quando Vladimir Herzog chegou com vida e de onde saiu sem ela...

Lamento, contudo, não entrar mais em detalhes, pois acho que já disse o que tinha a dizer. No entanto, para quem tiver interesse em saber maiores detalhes a respeito do caso Herzog, sugiro a leitura de uma cobertura especial a respeito feita pelo jornalista brasileiro Ricardo Noblat e divulgada no seu blog. Para tanto, basta clicar no link abaixo:


 

Outra sugestão é a do site oficial do Instituto Vladimir Herzog:


No mais, como diria Caio Fernando Abreu (1948 - 1996), jornalista, dramaturgo e escritor brasileiro: — Descobre, desvenda. Há sempre mais por trás. Que não te baste nunca uma aparência do real...





De nada adiantou: os militares ignoraram-na. Ela, por sua vez, como havia prometido, instalou oficialmente a Comissão Nacional da Verdade. Irredutíveis, ou melhor, arrogantes por natureza, os homens de farda não se deram por vencidos e criaram a Comissão da Verdade Paralela. Nossa! Sem nem na reserva eles nos deixam em paz, temos mesmo de apoiar os esculachos do LPJ, que, aliás, já deixou bem claro: — Se eles não nos deixam sonhar, não os deixaremos dormir!


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Tudo a ver com as palavras do então cardeal de São Paulo, dom Paulo Evaristo Arns (atualmente, arcebispo emérito), proferidas, quiçá profeticamente, quando do assassinato de Herzog: — Que a memória de Vladimir faça dessa geração a geração da esperança que renasce todos os dias, e que as esperanças em conjunto formem uma corrente irresistível, que nos levará a dias melhores...

Vamos, portanto, escrachar!


Nathalie Bernardo da Câmara


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