Ilustração do francês Frédéric Théodore Lix (1830 - 1897) para a tradução francesa de The Purloined letter (1845), do norte-americano Edgar Allan Poe (1809 - 1849), intitulada La Lettre volée (1864).
“Em A Carta roubada, conto de Edgar Allan Poe, o chefe de polícia busca infrutiferamente em todos os aposentos de um dos ministros uma carta que foi roubada da rainha e que compromete sua honra. O chefe e sua equipe entraram várias vezes de maneira ilegal no quarto do ministro, registraram cômodo por cômodo, móvel a móvel, utilizaram inclusive agulhas para espetar as almofada em busca da carta e, meu favorito, desmontaram inclusive os pés da cama e da mesa para buscar no interior destas sem que a carta aparecesse em nenhum lugar. Desesperado o chefe pede ajuda ao primeiro investigador do romance policial, Auguste E. Dupin em busca de auxílio. Com sua característica sagacidade de jogar, Dupin resolve imediatamente o mistério, porque a carta estava simplesmente em cima de uma cômoda, a vista de todo o mundo...”. – Luis Martín-Cabrera (06.05.2011) – Revista Fórum – Tradução de Cainã Vidor – Publicado originalmente em http://rebelion.org/noticia.php?id=127730.
A Carta roubada*
Por Marina Silva
Ambientalista brasileira
O Brasil não tem mais um Código Florestal, mas uma confusão jurídica. Um amontoado de remendos cuja função é semelhante à de uma pinguela, uma ponte improvisada no tronco de uma árvore abatida, para atravessar o período da Rio+20. Depois, o empenho em destruir a legislação ambiental certamente prosseguirá.
A versão: apesar de já ter o texto do novo Código "Florestal", o governo só o mostrou três dias depois da pomposa entrevista ministerial. Todos, inclusive jornalistas, às cegas, com acesso só à versão, feita em PowerPoint, de que a presidente Dilma chancelou (em alguns aspectos até piorou) o texto, ao arrepio da palavra empenhada, em "respeito ao Congresso e à democracia".
Só que os fatos, mesmo quando distorcidos, estarão sempre, como na carta roubada de Edgar Allan Poe, bem ali, no lugar onde se imaginava tê-los escondido.
Quatro dias depois, não no porta-cartas, mas no "Diário Oficial", estavam as inúmeras maldades da caixa de Pandora, sempre indiferente ao futuro, na velha porção ruralista: anistia aos desmatadores e incentivo a novos desmatamentos. Exigências abaixo do mínimo aceitável cientificamente de proteção aos topos de morros, encostas, veredas, apicuns, margens de rios, manguezais etc.
Está sendo abolida, na prática, a função social da propriedade e o direito dos brasileiros a um ambiente saudável. Os donos da terra são agora donos do ar, das águas, da fauna e da flora, para delas dispor como bem entender a lei do mais forte, que fizeram prevalecer.
Em troca, devem apenas evitar comemorações públicas, fingir contrariedade aceitando os vetos parciais e criticar os "radicais" ambientalistas, que não querem sorrir para a foto. Estes apenas alertam para a verdade simples: nem tudo pode ser objeto de negociação política. Se uma nascente, para não secar, precisa de certa quantidade de vegetação ao seu redor, como podem parlamentares decidir que não?
O Brasil será, enquanto não recuperar o bom-senso nessa área, uma terra sem lei. A violência recrudesce e não se passa uma semana sem um assassinato no campo ou na floresta. A discussão do código concentrou-se em anistiar ou não quem desmatou, se até 2008 ou antes, se deveriam ou não reflorestar, se toda a área ou só uma parte etc. Resumindo, em que medida legalizar os crimes ambientais. E o pior, o acordo político decidiu que a ilegalidade ambiental compensa.
Vamos agora à Rio+20 com o governo exibindo ao mundo os bons frutos da queda do desmatamento, obtidos com a lei que está sendo abolida.
Mas há uma falha, no mundo como no Brasil, nesse sistema: a natureza não o obedece. E a sua versão será o futuro real, a palavra final, a lei que "pega" e que pune.
*Artigo publicado no Jornal Folha de S. Paulo, no dia 1º de junho de 2012.
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