Edmar Viana por ele mesmo – Reprodução da ilustração da página na qual Edmar dedica o livro Cartão Amarelo – 30 anos, publicado em parceria com o jornalista brasileiro Everaldo Lopes, publicado sob os incentivos fiscais da Lei Câmara Cascudo (n° 7.799) – Governo do Estado do Rio Grande do Norte, em 2003.
“Edmar não era apenas chargista. O seu humor era circense: ele era um palhaço do traço...”.
Ivan Cabral
Chargista e artista gráfico brasileiro, natural de Areia Branca, no Rio Grande do Norte, mas radicado em Natal.
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“O humor, numa concepção mais exigente, não é apenas a arte de fazer rir. Isso é comicidade ou qualquer outro nome que se escolha. Na verdade, o humor é uma análise crítica do homem e da vida. Uma análise não necessariamente comprometida com o riso; uma análise desmistificadora, reveladora, cáustica. Humor é uma forma de tirar a roupa da mentira e o seu êxito está na alegria que ele provoca pela descoberta inesperada da verdade...”.
Ziraldo
Pintor, cartazista, jornalista, teatrólogo, chargista, caricaturista e escritor brasileiro, em depoimento a revista Veja no dia 31 de dezembro de 1969.
O ano? 1997. Trabalhando em conjunto com a Secretaria de Turismo da Prefeitura Municipal de Nísia Floresta e do então Conselho Municipal dos Direitos da Mulher e das Minorias de Natal para a promoção de um evento na cidade berço da educadora e escritora brasileira Nísia Floresta (1810 - 1885), fiquei encarregada da elaboração de uma espécie de cartilha sobre aquela que é considerada a pioneira do feminismo no Brasil, a ser distribuída durante as comemorações dos 187 anos do seu nascimento, no dia 12 de outubro. Durante, portanto, a idealização da tal cartilha, eu achei que, se a ilustrasse, tornaria a leitura do seu conteúdo mais palatável, sobretudo para os alunos das escolas do município, o meu principal foco. Ocorre que, pelo fato de, dois anos antes, ter iniciado as minhas pesquisas sobre a feminista norte-rio-grandense, cujo objetivo era o de escrever o roteiro de um documentário para o cinema sobre a sua vida e obra e, de quebra, como se diz, traduzindo, do francês para o português, o último dos livros publicados por ela – em 2001 a tradução foi publicada pela Editora da Universidade de Brasília –, sabia que estava restrita a três, no máximo a quatro imagens que retratavam Nísia. E todas, inclusive, já bastante utilizadas por terceiros, portanto, desgastadas. De imediato, como é do meio feitio, achei que poderia ser interessante, inclusive inovador, ilustrar a cartilha com desenhos de Nísia a partir das imagens que dispunha. Afinal, como eu diria, tempos depois, na introdução de um livro, ainda inédito, que escrevi para ser ilustrado com tiras e se tornar uma história em quadrinhos: sou uma “apreciadora do humor característico desse ofício”. Enfim! Tomada a decisão, telefonei para um amigo que, em 1993, havia conhecido em Paris, o paraibano Henrique Magalhães, mestre em fanzine e, à época, na iminência de se tornar doutor em história em quadrinhos, além de ser o pai da polêmica Maria, personagem criada por ele, em 1975, que se tornou uma ilustre e enfática porta-voz do combate e da resistência à ditadura militar no Brasil (1964 - 1985), cujas estripulias eram publicadas em tiras nos jornais de João Pessoa. Porém, acumulado de tarefas desde que retornara da França, dando aulas etc, Henrique lamentou e disse que, infelizmente, não poderia me ajudar, perguntando, contudo, onde eu estava. Respondi que em Natal. Foi aí, então, que ele me disse:
— Criatura, você tem aí um cara que, com certeza, topará fazer as ilustrações!
Perguntei quem era e fiquei sabendo que se tratava de Edmar Viana, chargista e ilustrador potiguar. Surpresa com a indicação, disse:
— Não é aquele do Cartão Amarelo?
O meu amigo confirmou e eu, que só conhecia Edmar de nome, através das divertidas charges que, juntamente com Everaldo Lopes, jornalista pernambucano, ele publicava na imprensa local desde que eu tinha cinco anos de idade, e porque havia sido professor do meu irmão na Universidade Potiguar (UNP), retruquei:
— Sei não, Henrique, esse cara deve ser muito ocupado...
— Ocupado ele é, sim, mas também é gente muito boa. Edmar é genial!
Fiquei ouvindo, já que o meu amigo, que, inclusive, era fã do trabalho do colega de traço, passou a enumerar demais predicados acerca de Edmar, deixando-me, contudo, hesitante: se o cara era tudo aquilo, era bem capaz de ele não me receber.
— Que nada, Nathalie! Deixa de bobagem e fala que fui eu quem o indicou. Vá, procure por ele...
Seguindo, portanto, a sugestão que me havia sido feita por Henrique, dei um jeito de conseguir o telefone de Edmar e, apesar de titubear, liguei para ele, logo chamando a minha atenção a sua informalidade e pontual disponibilidade para sentar e conversar comigo a respeito da cartilha sobre Nísia Floresta. Marcamos, então, de nos encontrar e lhe passei a minha ideia, de cara “topando”, como havia dito o meu amigo, fazer uma parceria. Eu escreveria os textos e ele os ilustraria. Perguntei quanto cobraria pelo trabalho e, para meu espanto, ele disse que nada. À ocasião, nem acreditei. Afinal, seriam nove ilustrações e isso ocuparia o seu tempo. Só que ele foi irredutível e ficou por isso mesmo. No correr dos dias, nas minhas idas ao jornal para tratarmos do projeto e certa vez num barzinho, percebi que estava diante de uma pessoa ímpar, de um ser humano singular, de bem com a vida e, sobretudo, com ele mesmo, além de ser um artista nato. Resumindo: Edmar era o humor encarnado. Sempre muito eloquente, era o tipo de pessoa que só poderia mesmo se tornar um chargista, visto que, não importava o assunto, banal ou não, ele sempre fazia uma piada. Era um moleque. Sim, mesmo sendo, como se diz, um homem grande – e de altura também –, era um moleque, tal qual a personagem Pivete, que ele criou em 1980, e que também não tinha papas na língua. Eu, que não ficava atrás, apesar da minha estatura mediana, costumava igualmente fazer algumas piadas. E foi assim que, entusiasmada pelo humor que embalou o nosso trabalho, certo dia cheguei ao Conselho da Mulher com o material que havíamos produzido debaixo do braço para mostrá-lo a sua então presidente, Isaura Amélia Rosado, hoje secretária de Cultura do Rio Grande do Norte, bem como à Marilene de Brito, que, à época, era secretária de Turismo do município de Nísia Floresta, não demorando muito para que o conteúdo da cartilha fosse aprovado. E uma questão pairou no ar. Quem iria imprimi-la. A ideia foi a de que a Fundação José Augusto fizesse isso por nós. Falamos, portanto, com o jornalista Woden Madruga, que a presidia, e ele, então, disponibilizou o maquinário da gráfica da instituição para tal fim. Desse modo, o evento estava completo. E, como já disse antes, foi realizado na data prevista, ou seja, no dia 12 de outubro de 1997. Assim, quando isso aconteceu, a antiga Papary tornou-se palco de atividades várias.
Falando nisso, no bojo das atividades, teve, ainda, além de palestras, uma visita ao mausoléu que guarda os restos mortais da educadora Nísia Floresta, cujo traslado, aliás, da França, onde ela morreu, para o Brasil, data de 1954 – coisa que, inclusive, para quem conhece a história de Nísia Floresta, nem deveria ter acontecido. Mas, essa é outra história. E não me apetece contá-la aqui, pois já a conto no meu roteiro...
Uma das ilustrações feitas por Edmar Viana para a cartilha Da aurora ao crepúsculo (1997). Detalhe: a frase da ilustração foi ideia dele...
Enfim! O título escolhido para a tal cartilha, que – imagino –, quem teve acesso a algum exemplar, guarda-o até hoje, sobretudo os alunos – meu público-alvo, em particular –, foi Da aurora ao crepúsculo, nome, inclusive, do filme que ainda pretendo realizar sobre Nísia Floresta, e o seu conteúdo dividido em duas partes: Os Escritos nisianos e Os Temas abordados por ela na sua vida e na sua obra. A primeira parte, portanto, compreende ao seu ofício de escrever, ou seja: Nísia, a jornalista, a tradutora e a escritora, enquanto a segunda parte fala da mulher, da educação e do feminismo – no qual está inserida a sua porção educadora; do drama do índio brasileiro; do negro no Brasil; das ideias republicanas; do positivismo; do misticismo e das religiões, sendo, contudo, ambas as partes antecedidas por uma introdução, na qual pincelo passagens da biografia de Nísia, finalizando a cartilha com um poema, de minha autoria, e da bibliografia – títulos em português, francês, italiano e em inglês – da minha biografada. Bom! Durante todo esse processo, em meio ao qual eu escrevia os textos da cartilha e Edmar encarregava-se das ilustrações sempre com o seu traço tão peculiar, nos tornamos amigos. O curioso é que, depois disso, nas vezes em que me referia a ele, eu costumava dizer “o meu amigo dos desenhos”. Ele, por sua vez, chamava-me de “tinhosa”. Não por ser teimosa, mas obstinada em tudo o que me propunha a fazer – e continuo o sendo. O sotaque nordestino de Edmar, por sua vez, era uma graça. E ele sentia orgulho disso. Eu, que, por onde passo, sinto o meu se metamorfoseando, reparava no dele, acentuado. Quando contava piadas, então! Impossível não ser contagiado pelo bom humor de Edmar, capaz, inclusive, de tirar nem que fosse um furtivo riso dos mais empedernidos. Os anos, entretanto, foram passando. Cada um tocando a vida. Ele em Natal e eu por aí... Certa vez, em 2005, de passagem por Natal, fui procurá-lo na Companhia Energética do Rio Grande do Norte (COSERN), onde, por anos, ele havia trabalhado como analista de sistema – Edmar formou-se em matemática –, à ocasião, gerenciava o Departamento de Comunicação e Relações Sociais da empresa. Eu sabia, portanto, que ele era um dos poucos que fazia de um tudo, como dizem os goianos, para apoiar os mais diversos projetos culturais no Estado, patrocinando espetáculos de música, teatro e publicações de livros.
Então... Tendo recebido o certificado da Lei Câmara Cascudo, autorizando-me a captar recursos para o meu filme sobre Nísia Floresta, corri para ele. Com o coração apertado, Edmar disse que, infelizmente, a COSERN não patrocinava cinema, estando, assim, além da sua alçada liberar os recursos necessários para a realização do longa-metragem – imagine o drama do moço, que sempre apoiou o meu projeto de levar a vida de Nísia às telas... O fato é que, por mais que quisesse, ele estava impossibilitado de me ajudar: “Eu não posso, neguinha...”. E deixei o assunto quieto. Deixei Edmar quieto. Ele, contudo, disse-me que, quando tudo estivesse arranjado, captação de recursos, pré-produção, essas coisas, ele faria o site do filme – infelizmente, continuo no aguardo de patrocínio para realizá-lo. Bom! Posso não ter saído do nosso encontro com a garantia do apoio cultural que buscava, mas, pelo menos, não sai com as mãos abanando: à ocasião, Edmar me presenteou com um exemplar do livro Cartão Amarelo – 30 anos, uma amostra das crias geradas por ele e pelo jornalista Everaldo Lopes ao longo de três décadas, inicialmente no Diário de Natal, a partir de 1973, e, depois, na Tribuna do Norte, para onde a dupla transferiu-se em 1988, ou seja, o livro seria uma celebração, digamos, das bodas de pérola da parceria. E eis a carinhosa dedicatória que escreveu para mim...
Segundo dados do livro mencionado, Edmar ingressou no movimento do Grupo de Pesquisas em Histórias em Quadrinhos (Grupehg) em 1975, publicando tiras e histórias em quadrinhos em diversas revistas, sendo muitas das suas charges temas para questões de vestibulares da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), bem como publicadas na imprensa nacional. Os anos passando e, em 1987, foi coautor, juntamente com Ivan Cabral e os chargistas Cláudio de Oliveira, Roberto Solino e Manuel Vaz de O Chafurdo, um tabloide de humor que circulou em quatro números; em 1988, pela editora Marca de Fantasia, do meu amigo Henrique Magalhães, Edmar publicou Pivete e, durante o governo de Fernando Collor, foi coautor, novamente com Cláudio de Oliveira e Ivan Cabral, além de Emanoel Amaral, do livro Já Era Collor. Em 2008, em Brasília, informaram-me do seu estado de saúde abalado e, através de uma amiga em comum, lhe enviei um e-mail, pedindo que ele vivesse para poder continuar a fazer aquilo que mais gostava, ou seja, desenhar – tempos depois, descobri que as minhas palavras nunca pousaram em suas mãos, mas apenas porque não lhes foram entregues... Enfim! Inocentemente, pensando que ele havia recebido e lido o meu e-mail, no qual, inclusive, eu lhe contava de um projeto então recente, que era um texto para um livro de quadrinhos, que, aliás, ainda permanece inédito, pois não encontro quem o ilustre, quando soube que ele havia tido uma melhora, quis entrar em contato, mas não consegui. O fato é que eu só ia perguntar se, quando ele estivesse legal, de volta ao batente, firme e forte, aceitaria a proposta anteriormente feita, que era a de ilustrar a minha história. De repente, contudo, uma nova recaída. E o telefone toca. Era a minha mãe, ligando-me de Natal para dizer... Bom! Para me contar – digamos – da falha no script da história de Edmar. Era Outono, literalmente, quando as mais belas folhas fenecem e, ao cairem, são levadas ao vento sabe-se lá para onde. O dia? 25 de março. Porém, ontem, 25 de junho, caso ainda estivesse cá, por estas bandas, rabiscando uma ideia qualquer, Edmar estaria completando 57 anos de idade, ou seja, um menino, brincando de desenhar. Falando em bandas, ele fundou, em 2004, o bloco carnavalesco Poetas, Carecas, Bruxas e Lobisomens – Vigi! Um presente, entretanto, bem ao seu estilo, a praia de Ponta Negra. É, coisas de Edmar.
E fico a lembrar de uma vez em que o encontrei no aeroporto de Natal, embora não saiba precisar o dia, mas, com certeza, foi entre 2005 e 2008: ele estava com a mulher, Iracema, num dos balcões da praça de alimentação. Aproximei-me, sorrateira, e dei dois leves toques nas suas costas, igual criança pequena. Ele, então, virou-se e, quando me viu, foi aquele abraço! E, também, a última vez em que nos víamos. Agora, eu diria que foi a nossa despedida, ambos indo para um canto diferente, tomando o seu rumo...
Nathalie Bernardo da Câmara
PS: Folheando o exemplar do livro que Edmar presenteou-me, selecionei algumas charges que, além de extremamente criativas, são por demais atuais. Todas, inclusive, do período que foi disposto no livro, ou seja, de 1994 a 2003 – espero que ele goste da minha lembrança. E só não escrevi e publiquei esta postagem ontem porque tive uma baita crise de tendinite. Sem trocadilhos, ossos do ofício.
E voilà!
Emocionada com a referência ao meu querido amigo Edmar Viana. Tive o privilégio de conviver com essa pessoa singular durante os quase 12 anos que atuei como revisora e supervisora de revisão na Redação da Tribuna do Norte. Sem contar de algumas inserções na Secretaria Gráfica. Sempre com tiradas humoradas, muitas vezes, dialogava com a gente sobre suas críações. Além disso, foi um grande incentivador de minhas simples iniciativas nas Semana de Cultura na escola pública onde lecionava. Chegou também a fazer uma ilustração para um jornal escolar que criamos na escola. Além de partilhar de outros momentos junto com a equipe que trabalhava com ele na COSERN: Socorro Leite e Fernando. O seu texto evocou a minha memória desse grande profissional e amigo ao qual tive o privilégio e conviver e aprender com sua sabedoria.
ResponderExcluirObrigada, Rejane... Felizmente, os meus textos são sempre lidos, visitados, revisitados... A postagem sobre Edmar, por exemplo, vez por outra, andam a ler... Tb me emociono. Então... Vou passar a responder os comentários q os leitores queridos, igual vc, postam no meu blog.
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