“A impunidade é segura quando a cumplicidade é geral...”.
Marquês de Maricá (1773 - 1848)
Escritor, filósofo e político brasileiro.
Espero, sinceramente, que, no caso dos militares brasileiros e de todos os que fizeram parte do esquema repressor e de torturas do regime ditatorial imposto ao povo brasileiro de 1964 a 1985, haja, sim, punição para os seus atos criminosos. Porém, quando, nesta quinta-feira (14), tomei conhecimento de que, graças à má interpretação – intencional? – da Lei da Anistia, entre outros instrumentos ditos legais não aplicados ou mal aplicados, o Brasil, no quesito sistema carcerário, está sendo considerado um dos campeões de torturas no mundo, pressinto que, visto que a pauta do dia é a Comissão Nacional da Verdade, devemos somar todos os esforços necessários para que os responsáveis pelos desmandos da ditadura militar no país sejam devidamente punidos. De qualquer modo, já que toquei no assunto, a partir do relatório, segundo a Agência Brasil, feito pelo Subcomitê de Prevenção da Tortura (SPT) da Organização das Nações Unidas (ONU), “a impunidade por atos de tortura está disseminada no Brasil”. De acordo, ainda, com a reportagem, tal fato evidencia-se “pelo ‘fracasso generalizado’ na tentativa de levar os criminosos à Justiça, assim como pela resistência de uma cultura que aceita os abusos cometidos por funcionários públicos”. Isso sem falar que, “no relatório, o subcomitê manifesta preocupação com o fato de a atual estrutura institucional no Brasil não proporcionar proteção suficiente contra a tortura e os maus-tratos”. E os registros prosseguem: “Durante a visita [ao país], o subcomitê encontrou cadeias em condições precárias, com número restrito de agentes”, mas, ao mesmo tempo, também encontrou quem denunciasse “casos de tortura, maus-tratos, corrupção e controle de milícias” nos presídios brasileiros. O governo federal, por sua vez, tem um prazo para se posiciona a respeito – claro que com uma resposta em mãos para solucionar o problema posto em questão –, ou seja, até o próximo dia 8 de agosto. Só que – sem querer ser pessimista – como bem o disse o jornalista brasileiro Paulo Henrique Amorim, com a sua língua sempre para lá de afiada, referindo-se à postura do governo federal em relação as torturas praticadas a 3x4 nos cárceres do Brasil:
— Com uma Lei de Anistia que deixa impunes os torturadores mais graduados, esperar o quê?
Enfim! Vamos agora ao propósito inicial desta postagem, que é a reprodução de um artigo de autoria do escritor Frei Betto, publicado no dia 21 de maio deste ano na revista Carta Maior, sobre a dupla face da Comissão Nacional da Verdade.
Nathalie Bernardo da Câmara
Os Dois lados da Comissão da Verdade
Por Frei Betto*
Frade dominicano e escritor brasileiro, além de assessor de movimentos sociais.
A Comissão da Verdade, nomeada pela presidente Dilma, corre o risco de se transformar em Comissão da Vaidade, caso seus integrantes façam dela alavanca de vaidades pessoais.
No dia seguinte às nomeações, ainda antes da posse, opiniões díspares dos membros da comissão quanto a seu objetivo precípuo surgiram na mídia.
O ministro Gilson Dipp, do Superior Tribunal de Justiça, se enquadra nos critérios definidos pela lei que criou a comissão?
Nos termos de seu artigo 2º, §1, inciso II, “Não poderão participar da Comissão Nacional da Verdade aqueles que (...) não tenham condições de atuar com imparcialidade no exercício das competências da Comissão”.
Ao atuar como perito do Estado brasileiro na Corte Interamericana de Direitos Humanos, Dipp se posicionou contra familiares dos guerrilheiros do Araguaia, cujos corpos encontram-se desaparecidos. Agirá agora com imparcialidade?
O papel dos sete nomeados é investigar graves violações de direitos humanos ocorridas entre 1946 e 1988. O foco principal é, em nome do Estado, abraçarem a postura épica e ética de Antígona e dar sepultura digna aos mortos e desaparecidos sob a ditadura militar (1964-1985).
A comissão atuará sob a obscura luz da injusta Lei da Anistia, promulgada em 1979 e referendada pelo STF em 2010. Essa lei nivela torturadores e torturados, assassinos e assassinados. Ora, como anistiar quem jamais sofreu julgamento, sentença e punição?
Não houve “dois lados”. Houve o golpe de Estado perpetrado por militares e a derrubada de um governo constitucional e democraticamente eleito.
A ditadura implantada cassou e caçou partidos e políticos, e criou um aparelho repressivo (“o monstro”, segundo o general Golbery), que instalou centros de torturas mantido com recursos públicos e privados.
O aparelho repressivo, em nome da “segurança nacional”, prendeu, seviciou, assassinou, exilou, baniu e fez desaparecer os que ousaram combater a ditadura e também inúmeras pessoas que jamais se envolveram com a resistência organizada, como o ex-deputado Rubens Paiva, o jornalista Vladimir Herzog e o padre Antônio Henrique Pereira Neto.
Cabe à comissão elucidar a morte das vítimas da ditadura, o que ocorreu aos desaparecidos e quem são os responsáveis por tais atrocidades. Militares cumprem ordens superiores. É preciso apurar quem determinou a prática de torturas, a eliminação sumária de militantes políticos e o ocultamento de seus corpos.
A comissão deverá, enfim, abrir os arquivos das Forças Armadas, ouvir algozes e seus superiores hierárquicos, ouvir vítimas e parentes dos desaparecidos e esclarecer episódios emblemáticos jamais devidamente investigados, como o atentado ao Riocentro, em 1981, preparado para ceifar a vida de milhares de pessoas.
Defender o conceito acaciano de “crimes conexos” e convocar como suspeitos aqueles a quem o Brasil deve, hoje, o resgate da democracia e do Estado de Direito, equivaleria a imputar à Resistência Francesa crimes contra a ocupação nazista de Paris ou convocar os judeus como réus no Tribunal de Nuremberg.
Os integrantes da Comissão da Verdade sabem muito bem que legalidade e justiça não são sinônimos. E tenham presente a afirmação de Cervantes: “A verdade alivia mais do que machuca. E estará sempre acima de qualquer falsidade, como o óleo sobre a água”.
*Carlos Alberto Libânio Christo, 67, autor de Diário de Fernando: Nos cárceres da ditadura militar brasileira, publicado em 2009 pela Editora Rocco.
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