sábado, 22 de janeiro de 2011

PANAHI: RETROSPECTIVA II

PERSONA NON GRATA?

 
“Virei uma militante, malgré moi. Não se trata de querer, mas de necessidade. Muitas vezes, senão sempre, a gente tem de tomar partido. A prisão de Jafar [Panahi] é uma ofensa à minha inteligência e sensibilidade. Um país precisa de seus artistas, o Irã precisa dele. Como não lutar por sua integridade artística e humana?”.

Juliette Binoche
Atriz francesa, ganhadora da Palma de Ouro de Melhor Atriz no Festival Internacional de Cinema de Cannes de 2010 pela sua interpretação em Copie conforme (Cópia fiel), do cineasta iraniano Abbas Kiarostami, 70, em resposta ao jornalista e crítico de cinema brasileiro Luiz Carlos Merten, enviado especial do jornal O Estado de São Paulo, há 540 dias sob censura, que perguntou se ela havia virado a militante política do evento, já que, durante a coletiva do filme, quando a equipe tomou conhecimento que o roteirista e diretor iraniano Panahi, prisioneiro do governo do Irã desde o início de março por acusações de “crimes não-especificados”, estava fazendo greve de fome, ela desatou em lágrimas, que correram o mundo, sensibilizando a opinião pública. Assim, ao receber o troféu na solenidade da entrega dos prêmios do Festival de Cannes, ela não hesitou e, solidária com o drama de Panahi, exibiu uma plaquinha com o nome do cineasta e – não havia melhor ocasião – clamou as autoridades iranianas por sua libertação.



Durante, ainda, o Festival de Cannes de 2010, o ministro francês da Cultura, Frédéric Mitterrand, leu uma carta escrita da prisão pelo iraniano Jafar Panahi, na qual o cineasta justifica o motivo de não poder comparecer ao evento, já que havia sido convidado para integrar o júri internacional que elegeria o vencedor da Palma de Ouro, alega inocência e diz que não assinará confissão alguma as autoridades iranianas, nem sob ameaças, e agradece a França por apoiar a sua libertação, acrescentando que, além dele, milhares de outros presos inocentes existem no Irã e que também devem lembrados – dias antes, o Ministério das Relações Exteriores da França, juntamente com o Ministério da Cultura, divulgou uma nota condenando o Irã pela prisão de Panahi, um dos representantes mais reconhecidos do cinema iraniano. Assinada pelos ministros Bernard Kouchner e Frédéric Mitterrand, a declaração pedia a libertação imediata do cineasta e que as autoridades iranianas respeitassem o direito fundamental à liberdade de expressão e de criação.

De fato, o Festival de Cannes de 2010 foi praticamente uma tribuna de ativistas pelos direitos humanos. Já na sua abertura, outro exemplo, a atriz franco-britânica Kristin Scott Thomas remarcou que a cadeira vazia ao lado das dos demais jurados seria a de Panahi, “preso em seu país contra a sua vontade”, enquanto o presidente do júri da mostra competitiva, o diretor norte-americano Tim Burton, pediu a libertação do cineasta iraniano, que, inclusive, teve um curta-metragem exibido em um dos dias do evento, no qual ele descreve o interrogatório ao qual foi submetido antes da prisão e as ameaças que sofreu, bem como mencionou o questionamento feito por um policial que quis saber o motivo da sua permanência no Irã: — Por que não vai fazer filmes no exterior?


Deu no twitter: Free Panahi!
O diretor iraniano foi condenado a 6 anos de prisão
(e a 20 anos sem poder exercer sua profissão)....
 


Eu, particularmente, se morasse no Irã, não pensaria duas vezes... Bom! As autoridades do Irã, por sua vez – nenhuma novidade –, sequer respondeu, oficialmente falando, aos pedidos feitos durante o Festival de Cannes para que Panahi fosse libertado. O fato, como se sabe, é que a sua tão clamada libertação veio – resultado, provavelmente, de um somatório de fatores: os protestos oriundos dos quatro cantos do mundo contra a sua prisão, a sua greve de fome, o encerramento da edição do Festival de Cannes, da qual Panahi seria júri... E só por isso! Não porque as autoridades do Irã tiveram um insight e chegaram à conclusão de que, de fato, não tinha provas para manter encarcerado um homem inocente. Ou seja, não tinha como especificar os supostos crimes que, porventura, ele havia cometido, visto que, a bem da verdade, ele não cometera nenhum. Ocorre que, como também já se sabe, a medida – a sua soltura – foi apenas retardada, afim de que o cineasta não comparecesse ao Festival de Cannes. Assim, preso, teria uma justificativa para a sua ausência...

Quanto a sua libertação, por pouco tempo. Afinal, não demorou muito, a tirania islâmica refez o seu arsenal de maldades e, ao longo dos últimos meses de 2010, foi, sistematicamente, destilando o seu fel contra o cineasta. Tanto que, em setembro, embora tecnicamente liberto, Panahi foi proibido de pôr os pés no Festival Internacional de Cinema de Veneza, que o esperava para fazer as honras da casa, abrindo o evento com a exibição de um dos seus curtas-metragens, O Acordeão, rodado em Teerã – uma opção política, já que, segundo o cineasta, o filme “reflete as minhas emoções e expressa a minha maneira de observar a realidade”, declarou em um comunicado. Fortemente engajado politicamente, Panahi disse, ainda, que é um cineasta que dá muita atenção aos assuntos sociais e o que acontece ao seu redor. Não é de se estranhar, portanto, que as autoridades iranianas tenham boicotado a sua ida ao mais antigo festival da História do cinema, ainda mais quando um dos seus filmes, estava programado para ser exibido na abertura do evento.

Enfim! Panahi não foi a Cannes nem a Veneza... O que mais poderia lhe acontecer? Aconteceu que, em outubro, uma nova represália o surpreenderia: o seu passaporte é confiscado. Deixar o Irã pelas vias legais? Nem pensar! A não ser que picasse a mula, atravessando as fronteiras iranianas sabe-se lá como e buscasse refúgio em algum lugar que respeitasse os seus direitos fundamentais e os civis, permitindo que ele respirasse livremente e pudesse manifestar as suas opiniões sem censura e sem que nenhum tirano ousasse cercear a sua liberdade de pensamento e expressão. Infelizmente, ele não o fez e, não demorou muito, o sistema iraniano enquadrou-o sem piedade. Em dezembro, segundo a advogada do cineasta, eis que o “veredicto pesado” de um sistema judiciário caduco desaba sob a cabeça de Panahi, tal qual uma guilhotina, decepando, de vez, as suas aspirações de liberdade: respondendo por uma acusação no mínimo esdrúxula, ele foi condenado a seis anos de prisão e a vinte de inatividade: nada de escrever roteiros, realizar filmes, dar entrevistas, deixar o país...

Resumindo: o cineasta foi condenado ao degredo em seu próprio país. Porém, a exemplo dos episódios anteriores, envolvendo as perseguições sofridas pelo cineasta, a última sentença repercutiu e uma nova onda de protestos se fez ouvir no mundo, reverberando, óbvio, no Irã. Ou será que o presidente Mahmoud Ahmadinejad, 54, não ouviu? Por acaso ele usaria tampões nas orelhas vinte e quatro horas por dia, impossibilitando lhe chegar aos ouvidos a voz daqueles que têm como pressuposto de vida a liberdade? O pior é que, apesar da onda de protestos persistir, a omissão das autoridades iranianas em relação ao caso Panahi passa a idéia – péssima, aliás –, de que o véu da censura no Irã é ainda mais intransponível do que as muralhas da China... Enfim! De nada adiantou a leitura, durante o julgamento, pelo menos para as autoridades iranianas, que o próprio réu fez de uma declaração* que ele mesmo havia escrito para a ocasião, independentemente da presença da advogada e da sua respectiva defesa: a tirania venceu mais esse round, mas, um dia, ela haverá de cair.

*Abaixo, a declaração escrita e lida por Panahi...
 


Nathalie Bernardo da Câmara

 
 
"Julgar-nos é julgar todo o cinema social iraniano"


Ilmo. Sr. Juiz, permita-me apresentar minha defesa em duas partes distintas.


Primeira parte: o que se diz

Nos últimos dias, revi vários de meus filmes preferidos da história do cinema, embora grande parte de minha coleção tenha sido confiscada durante o ataque à minha residência, ocorrido na noite de 19 de fevereiro de 2009. Na verdade, o Sr. Rassoulof e eu estávamos rodando um filme do gênero social e artístico quando as forças que alegavam fazer parte do Ministério da Defesa, sem apresentar nenhum mandado de busca oficial, a um só tempo nos prenderam, bem como a todos os nossos colaboradores, e confiscaram todos os meus filmes, que nunca me foram restituídos posteriormente. A única alusão feita a esses filmes foi a do juiz de instrução do processo: "Por que essa coleção de filmes obscenos?"

Gostaria de esclarecer que aprendi meu ofício de cineasta inspirado por esses mesmos filmes que o juiz chamava de “obscenos”. E, acredite, não sou capaz de entender como um adjetivo como esse possa ser atribuído a tais filmes, assim como sou incapaz de compreender como se pode chamar de “delito de opinião” a atividade pela qual hoje querem me julgar. Julgam-me, na verdade, por um filme que ainda não tinha nem o seu primeiro terço rodado quando fui preso. O senhor certamente conhece a expressão que diz que pronunciar apenas metade da frase "não existe nenhum deus além do grande Deus” é sinônimo de blasfêmia. Então, como se pode julgar um filme antes mesmo que ele esteja pronto?

Não sou capaz de entender nem a obscenidade dos filmes da História do cinema nem a acusação que é proferida contra mim. Julgar-nos é julgar todo o cinema engajado, social e humanitário iraniano; o cinema que pretende se posicionar para além do Bem e do Mal, o cinema que não julga e que não se põe a serviço do poder e do dinheiro, mas que dá o melhor de si para apresentar uma imagem realista da sociedade.

Acusam-me de ter desejado promover o espírito de tumulto e de revolta. No entanto, ao longo de toda a minha carreira de cineasta, sempre me declarei um cineasta social e não político, dotado de preocupações sociais e não políticas. Nunca desejei atuar como um juiz ou um procurador; não sou cineasta para julgar, mas para fazer enxergar; não pretendo decidir pelos outros nem prescrever-lhes o que quer que seja. Permita-me repetir minha intenção de posicionar meu cinema para além do Bem e do Mal. Esse tipo de engajamento sempre custou caro a meus colaboradores e a mim mesmo. Sofremos os prejuízos da censura, mas é a primeira vez que se condena e prende um cineasta para impedi-lo de fazer seu filme. Também pela primeira vez é feita uma perquisição na casa do referido cineasta e sua família é ameaçada enquanto ele passa uma “estadia” na prisão.

Acusam-me de ter participado de manifestações. A presença de câmeras era vetada durante essas reuniões, mas não se pode proibir que cineastas participem delas. Minha responsabilidade enquanto cineasta é observar para, um dia, manifestar o que vi.

Acusam-nos de ter começado as filmagens sem solicitar a autorização do governo. Devo esclarecer que não existe nenhuma lei promulgada pelo Parlamento que se refira a tais autorizações. Na verdade, existem apenas circulares interministeriais, que mudam à medida que mudam os vice-ministros.

Acusam-nos de ter começado as filmagens sem apresentar o roteiro aos atores do filme. Nosso modo de fazer cinema, que recruta principalmente atores, não profissionais, adota essa prática costumeiramente. Tal acusação me parece muito mais um produto do humor deslocado do que do setor jurídico.

Acusam-me de ter assinado petições. De fato, assinei uma petição na qual 37 dos nossos mais importantes cineastas declaravam sua inquietação quanto à situação do país. Infelizmente, em vez de ouvir esses artistas, acusam-nos de traição; e, no entanto, os signatários dessa petição são justamente as pessoas que sempre reagiram primeiro às injustiças do mundo todo. Como desejam que eles permaneçam indiferentes ao que acontece dentro de seu próprio país?

Acusam-me de ter fomentado manifestações no festival de Montreal; essa acusação não se baseia em lógica alguma, já que, enquanto diretor do júri, eu estava em Montreal havia apenas duas horas quando as manifestações começaram. Sem conhecer ninguém na cidade, como eu poderia ter organizado tais eventos? Talvez não se faça um esforço para lembrar, mas, durante esse período, nossos compatriotas se reuniam a fim de manifestar suas exigências.

Acusam-me de ter participado de entrevistas com as mídias de língua persa de fora do meu país. Mas não existe nenhuma lei proibindo tal ato.


Segunda parte: o que eu digo

O artista representa o espírito observador e analista da sociedade à qual ele pertence. Ele observa, analisa e procura apresentar o resultado disso em forma de obra de arte. Como se pode acusar e incriminar quem quer que seja em função de seu espírito e de sua maneira de enxergar as coisas? Tornar os artistas improdutivos e estéreis é sinônimo de destruir todas as formas de pensamento e de criatividade. O ataque efetuado à minha residência e a minha prisão e a de meus colaboradores representam o ataque do poder contra todos os artistas do país.

A mensagem transmitida por essa série de ações me parece bem clara e triste: quem não pensa como nós se arrependerá…

Finalmente, gostaria também de lembrar ao Tribunal outra ironia que diz respeito a mim: o espaço dedicado a meus prêmios internacionais no museu de cinema de Teerã é maior que minha cela penitenciária.

Seja lá como for, eu, Jafar Panahi, declaro solenemente que, apesar dos maus-tratos que ultimamente tenho sofrido de meu próprio país, sou iraniano e quero viver e trabalhar no Irã. Amo meu país e já paguei o preço por esse amor. No entanto, tenho outra declaração a acrescentar à primeira: sendo meus filmes provas irrefutáveis disso, eu declaro acreditar profundamente na observância das leis “dos outros”, da diferença, do respeito mútuo e da tolerância - a tolerância que me impede de julgar e de odiar. Não sou tomado de ódio nem mesmo pelos meus interrogadores, porque reconheço minha responsabilidade para com as gerações futuras.

A História com “H” maiúsculo é muito paciente; as pequenas histórias passam diante dela sem se dar conta de sua insignificância. De minha parte, preocupo-me com essas gerações futuras. Nosso país está muito vulnerável e somente a instauração do Estado de direito para todos, sem nenhuma consideração étnica, religiosa ou política, pode nos preservar do perigo bem real de um futuro próximo caótico e fatal. Em minha opinião, a tolerância é a única solução realista e honorável a esse perigo iminente.

Com meus sinceros respeitos, Ilmo. Sr. Juiz

Jafar Panahi, Cineasta Iraniano











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