sexta-feira, 22 de junho de 2012

O PESO E O CUSTO DO SABER



Como bem o disse o sociólogo e ativista político norte-americano Martin Luther King Jr. (1929 - 1968), defensor dos direitos humanos e laureado com o Prêmio Nobel da Paz de 1964:

— Para criar inimigos, não é necessário declarar guerra. Basta dizer o que pensa...


A leitura da entrevista do filósofo francês Alain Badiou ao jornalista argentino Eduardo Frebbo, correspondente em Paris da revista Carta Maior, transcrita nesta quinta-feira (21) neste blog, despertou-me, por associação – uma coisa leva à outra, é quase sempre assim, pelo menos comigo –, ao tema que ora abordo. Enfim! De fato, não somente ter acesso a dadas informações tem um custo, como também o próprio ato de pensar, de discernir. E isso apenas porque muitos desconhecem o que seja liberdade de pensamento e de expressão – o que dirá do direito de tê-la! Daí o peso.

Um exemplo crasso, apesar do fato em questão ter ocorrido há vinte anos, mas que, tão logo tomei conhecimento do mesmo, nunca o esqueci – quiçá pela esquizofrenia, insensatez, incongruência, disparate, sandice ou tenha o nome que tiver de um dos partícipes do episódio para lá de verídico –, foi quando, durante a Eco-92, no Rio de Janeiro, evento do qual participava ativamente, o então franciscano, teólogo, filósofo e escritor brasileiro Leonardo Boff recebeu uma advertência de “um cardeal-espião do Vaticano”, segundo ele revelou em entrevista a WWF-Brasil, publicada no dia 22 de maio deste ano, por nada ter aprendido com o “silêncio obsequioso” que lhe fora imposto em 1985 pelo então prefeito da Sagrada Congregação para a Doutrina da Fé do Vaticano, ou seja, o cardeal alemão Joseph Ratzinger.

Hoje papa Bento XVI, Ratzinger era arcebispo de Munique, na Alemanha, quando foi indicado para o cargo por João Paulo II (1920 – 2005), de quem era mentor intelectual – cargo esse, aliás, que ele ocupou por quase longos 24 anos (1981 - 2005). Ocorre que, como eu já disse noutras postagens, a dita Sagrada Congregação para a Doutrina da Fé do Vaticano, instituída pelo papa Paulo VI (1897 - 1978) em 1965, nada mais é do que o quarto e atual estágio da Inquisição... À época, portanto, por causa do livro Igreja: carisma e poder (1981), escrito por Boff, “que apenas denunciava a opressão da mulher, a concentração do poder nas mãos do clero e defendia os direitos humanos”, Ratzinger aplicou, digamos, um corretivo no autor.

Desse modo, Boff foi considerado um caso de heresia, tendo, inclusive, se sentado “na mesma cadeira onde, em outras circunstâncias [e períodos históricos distintos], sentaram-se os italianos Galileu Galilei (1564 – 1642) e Giordano Bruno (1548 – 1600)”, igualmente acusados de crimes idênticos, o brasileiro foi condenado por Ratzinger ao silêncio obsequioso: “Uma espécie de silêncio penitencial”, explicou Boff, um dos fundadores da Teologia da Libertação, que passou a ficar proibido de falar, de escrever, de publicar e de dar aulas. Segundo ele, “os métodos da atual Inquisição mudaram. Hoje, tortura-se apenas a psique do acusado, não mais o seu corpo...”. E haja hipocrisia, maledicência ou, quiçá, um lapso de memória de Ratzinger para aplicar penalidades tão esdrúxulas, sobretudo porque, certa feita, ele chegou a dizer que quando o respeito é violado, “algo de essencial se perde”. Um paradoxo? Vai saber!

Isso sem falar que o tal do silêncio obsequioso só foi suspenso graças à intervenção de outro religioso, o então arcebispo de São Paulo dom Paulo Evaristo Arns – hoje, emérito –, que, em encontro com Ratzinger, ousou repreendê-lo:

— Sua Santidade, o senhor fez com um aluno meu [Boff] aquilo que fazem os militares do Brasil: fechar a boca, cortar a língua...

Sem saída, constrangido diante da presença de Arns, cuja influência religiosa e política no Brasil e na América Latina ele não podia ignorar, Ratzinger tentou se defender:

— Eu, como os militares, torturadores? Absolutamente! Liberem o Boff...

E o tempo passou, estancando na Eco-92, quando, durante o evento, após a sua participação num debate sobre religião e paz, no qual, segundo a entrevista concedida à WWF-Brasil, Boff, que havia sido um dos membros da Comissão Central da Carta da Terra, idealizada pela Organização das Nações Unidas (ONU) em 1987, fez “pesadas críticas ao judaísmo, ao cristianismo e ao islamismo ‘por serem beligerantes’”, foi abordado de maneira ameaçadora pelo já mencionado “cardeal-espião do Vaticano, o cardeal Baggio”, que não hesitou em repreendê-lo, dizendo que ele nada aprendeu com o silêncio obsequioso e que, por isso, tinha de sair não somente do Brasil, mas da América Latina, podendo, contudo, escolher entre um convento na Coreia ou nas Filipinas, embora sem autorização nem para ensinar teologia nem para escrever, muito menos para pensar. Indignado, Boff retrucou:

— Na primeira vez, aceitei o silêncio em sinal de humildade; isso era uma virtude. Agora, esse silêncio imposto é manifestamente injusto; isso eu não aceito.

— Tem até amanhã ao meio-dia para decidir. – informou o seu interlocutor.

— Já decidi. – disse Boff. – Abandono uma trincheira, mas não a luta. E abandonou. Abandonou a Ordem dos Frades Menores, os franciscanos, na qual ingressou em 1959, com apenas 21 anos de idade, renunciando, concomitantemente, ao sacerdócio, criticando, entrementes, a falta total de gentileza do cardeal Baggio, que, segundo ele, já havia sido Núncio Apostólico no Brasil, visto que, ao lhe estender a mão para cumprimentá-lo, ele retirou a sua, mas ponderou. – Bem, eu me lembrei de São Francisco, que cumprimentava a todos e ficou amigo até do feroz lobo. Por que eu, franciscano, deveria ser diferente e não entender a rudeza de um cardeal pequeno de espírito e cheio de espírito de vingança?

Sei não, mas parece que a porção intelectual de Ratzinger não se interessou em ler, por exemplo – Boff provavelmente leu –, o filósofo e escritor francês Jean-Paul Sartre (1905 - 1980), que, muito sensatamente, chegou a dizer que “ninguém deve cometer a mesma tolice duas vezes”. Só que muita gente comete, a despeito – digamos – da sugestão do existencialista. E, invariavelmente, não somente duas, três, quatro... De repente, várias vezes! Quanto a Boff... Desde então, ou seja, desde que abandonou o sacerdócio, desligando-se dos franciscanos, ele tem se considerado “um cigano teológico” – não deixa de ser poético.

Ocorre que o que mais despertou a minha atenção nessa história toda não foi nem o fato de que quem deu a ordem não foi corajoso o suficiente para fazê-lo diretamente. Pelo contrário! O emissário recorreu a um mensageiro para entregar o recado; o que mais despertou a minha atenção, deixando-me perplexa – logo eu, que não me surpreendo com mais nada –, foi o detalhe, digamos assim, da ordem em si. Afinal, como é possível o humano, que se distingue das demais espécies exatamente por possuir o que chamam de razão, uma mente, ou seja, é um ser por natureza pensante, ficar em regime de clausura, seja num convento ou no raio que o parta – não importa o lugar –, e, num estalar de dedos, privar-se de pensar simplesmente porque lhe ordenam que ele faça isso? Ora, o ato de pensar é inerente à natureza humana, a sua condição de humano! E por mais que muitos ignorem isso, não implica que não pensem.

O fato é que, no caso, o pensar não estava relacionado ao pensamento em si, mas ao discernimento, visto que, além de pensar, quando uma mente discerne ela é duplamente temida. Daí o isolamento imposto. Só que, mesmo assim, esse tipo de confinamento não teria nenhuma serventia, a não ser a da tortura, já que a mente do confinado iria continuar pensando, discernindo. E o dono da mente tendo plena consciência disso, inclusive do seu confinamento, que bem poderia ser comparado à situação, embora por motivos diferentes, de um preso comum numa solitária de um presídio qualquer. Assim, seria muito mais honesto e objetivo chegar e dizer: “Ei, estamos querendo lhe tirar de circulação por tempo indeterminado, lhe encerrar num lugar isolado, sob nosso total controle e sem o direito, em hipótese alguma, de manifestar a sua opinião sobre certos temas...” – e haja delírio, o do algoz!


Não há limite para a insanidade mental?

 Jeanne d'Arc brûle au bûcher. Dessiné par Jules Eugène Lenepveu (1819 - 1898), un artiste français néoclassique.

Uma cena como essa, por exemplo, da francesa Joana d’Arc (1412 - 1431), cujo drama é um dos mais conhecidos, prestes a ser queimada viva com apenas 19 anos de idade, porque assim foi determinado por celerados de batina, nunca será considerada normal para quem possui discernimento. O mais grave, contudo, é que ainda existe quem carrega consigo um crucifixo e que, se pudesse, faria a mesma coisa ou algo similar com quem discorda das suas ideias, não comungando, portanto, com as suas sandices. Em uma visita que fiz a Rouen, na França, conheci o local onde, infelizmente, o fato ocorreu. À ocasião, ao invés da fogueira, obviamente, havia uma estátua, cercada de um belo jardim, daquela que, noutro surto de loucura, a Igreja católica transformou em santa, bem como em padroeira da França... E haja paradoxo! Eu, diante do monumento erguido em homenagem à la Pucelle d’Orléans (à Donzela de Orleans) e que passou a ser considerada uma heroína francesa? Confesso que senti um calafrio dos pés à cabeça. Porém, fiz uma fotografia e tratei de sair do local logo em seguida. O motivo? Medo. Medo de que os ponteiros do belíssimo Gros-Horloge (grande relógio), cuja construção data de 1389, ou seja, testemunha do martírio de Joana e não muito distante de onde eu estava, retrocedesse no tempo...


Pegando ambas as deixas, fico a refletir... Confesso que até sinto receio diante de uma pessoa que se comporta como se estivesse completamente desorientada ou, usando um termo atual, desconectada da realidade, já que, por seu destempero mental, não respeita sequer o direito de outrem de pensar. Não seria, então, mais prático, ainda mais nos dias de hoje, caso uma pessoa sinta-se ameaçada por um pensamento alheio, apertar tipo um botão e... Pronto! O cara deixa de pensar. Ou, senão, enxertar um chip na mente de quem quer que seja e, mesmo de longe, manipulá-la, controlá-la, já que ao seu dono é negado, por quem quer vê-lo riscado do mapa, o direito de pensar? De repente, quem sabe se também não poderia ser o caso de submeter o suposto estorvo, obviamente que à força, contra a sua vontade, a uma lobotomia, uma lavagem cerebral? Afinal – e sorte a nossa –, não existem mais fogueiras acesas pela Inquisição medieval – que de santa não tinha nada – para lançar nas suas chamas quem diverge de não importa qual pensamento, ideologia ou dogma e que, por isso, só por isso, é considerado um herege, ou seja, alguém que diz não, e com todo o direito, ao que não lhe convém.

Outra solução, eu fico a pensar – sem nenhum trocadilho –, seria a de contratar um pistoleiro – prática, inclusive, bastante atual em certos lugares – para dá cabo da vida do pobre do infeliz que, apenas por pensar diferente e expressar as suas ideias, é visto como uma pedra no meio do caminho de um déspota qualquer. O fato é que quanto mais pensamos, ou seja, quanto mais temos discernimento, mais incomodamos aqueles que, por pura arrogância ou por algum tipo de transtorno mental, acham que, não importa o caso, são soberanos em alguma coisa e que quem não reza na sua cartilha é carta fora do baralho. Sejamos sensatos, não é? E aí, agora, não sei nem por qual motivo, veio-me à mente uma frase do brilhante linguista, escritor e ativista político norte-americano Noam Chomsky, que disse:

— Os EUA são o maior terrorista do mundo...

Concordo em gênero, número e grau com Chomsky, mas não podemos esquecer que os nazistas também o foram; que demais ditaduras ditas modernas, civis, militares ou religiosas, idem. E que igualmente ainda existem inúmeros outros terroristas, cujo grau de periculosidade é alarmante, mesmo que muitos não aparentem sê-lo, porque agem por debaixo dos panos, recorrem a artifícios sutis ou, mesmo, nem tão sutis assim. Enfim! Exercendo o meu direito de pensar e, sobretudo, de discernir, retornemos a Ratzinger, atualmente Bento XVI, que, inclusive, nem é preciso reparar nos detalhes –, vem caracterizando o seu mandato papal pelo despotismo, pela inflexibilidade no trato com os seus oponentes, pela intransigência e pelas posições retrógadas – o mais grave, irresponsáveis, criminosas –, quando o assunto, por exemplo, é o uso de métodos contraceptivos, principalmente o do preservativo, bem como quando se posiciona terminantemente contra o aborto, pouco importando para ele que, antes de tudo, tais questões dizem respeito à saúde pública, que, aliás, é da alçada dos governos de não importa qual país a criação de políticas nessa área – isto é, quando o governo é democrático, não uma extensão de uma dada religião, ainda mais se o Estado é laico.

O problema, contudo, é que esse senhor parou no tempo. Continua pensando e agindo como se ainda fosse inquisidor, sobretudo depois da sua promoção na hierarquia da Igreja católica – o que, infelizmente, só gera consequências cada vez mais desastrosas não somente para o seu rebanho, mas, também, para quem dele não faz parte. Afinal, nem a religião católica nem nenhuma outra tem autoridade nem moral – a História é testemunha – para tentar intervir em algo que não lhe diz respeito, muito menos no que tange ao aborto, já que, convenhamos, o corpo é da mulher, lhe pertence. E ela pode, sim, fazer o que bem entender com ele, inclusive abortar, sendo irrelevantes, portanto, os seus motivos para fazê-lo. Outro exemplo do que digo em relação à mentalidade medieval de Bento XVI ou, quem sabe, da sua... Deixa para lá! Não compensa gastar a minha energia nem muito menos os meus neurônios para discorrer sobre o tema, que me enoja, para citar o exemplo ao qual me referi. Assim, que as charges abaixo, cujos autores possuem discernimento e uma afiada criatividade, falem por si só.








Não foi à toa que o próprio Boff já alertou:

— A Igreja [católica] mente, é corrupta, cruel e sem piedade!

Para dizer isso, conhecimento de causa foi o que não faltou ao sábio e injustiçado teólogo, além de coragem, claro – coisa que, aliás, muitos nem sabem o que é...

Nathalie Bernardo da Câmara

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