sexta-feira, 15 de junho de 2012

A SEMÂNTICA DA VIOLÊNCIA

“(...) Como explicar que o golpe de 1964, no Brasil, se tenha autointitulado ‘revolução’ para combater a ‘subversão’ quando ambas são palavras que o bom senso e qualquer dicionário identificam como sinônimos?”.

Antônio Houaiss (1915 - 1999)
Linguista, escritor e diplomata brasileiro que teve seus os direitos políticos cassados pela ditadura militar (1964 - 1985), levantando a questão acima em entrevista ao jornal Correio da Manhã, no dia 3 de agosto de 1979.


Falando nisso, alguém sabe como se conjuga o verbo escrachar?


Bom! No dia 10 de abril deste ano, data da instalação oficial da Comissão Nacional da Verdade pela presidenta Dilma Rousseff, foi publicado um interessante artigo escrito por um dos colunistas do jornal Folha de S. Paulo. Lendo-o, portanto, achei interessante o seu teor e, diante da atual conjuntura política, bem como o tema da postagem anterior deste blog, aproveitei o ensejo para reproduzi-lo.



Honrar o país

Por Vladimir Safatle
Filósofo brasileiro


Aqueles que hoje desafiam a mudez do esquecimento e dizem, em voz alta, onde moram os que entraram pelos escaninhos da ditadura brasileira para torturar, estuprar, assassinar, sequestrar e ocultar cadáveres honram o país.

Quando a ditadura extorquiu uma anistia votada em um Congresso submisso e prenhe de senadores biônicos, ela logo afirmou que se tratava do resultado de um “amplo debate nacional”. Tentava, com isto, esconder que o resultado da votação da Lei da Anistia fora só 206 votos favoráveis (todos da Arena) e 201 contrários (do MDB). Ou seja, os números demonstravam uma peculiar concepção de “debate” no qual o vencedor não negocia, mas simplesmente impõe.

Depois desse engodo, os torturadores acreditaram poder dormir em paz, sem o risco de acordar com os gritos indignados da execração pública e da vergonha. Eles criaram um “vocabulário da desmobilização”, que sempre era pronunciado quando exigências de justiça voltavam a se fazer ouvir.

“Revanchismo”, “luta contra a ameaça comunista”, “guerra contra terroristas” foram palavras repetidas por 30 anos na esperança de que a geração pós-ditadura matasse mais uma vez aqueles que morreram lutando contra o totalitarismo. Matasse com as mãos pesadas do esquecimento.

Mas eis que estes que nasceram depois do fim da ditadura agora vão às ruas para nomear os que tentaram esconder seus crimes na sombra tranquila do anonimato.

Ao recusar o pacto de silêncio e dizer onde moram e trabalham os antigos agentes da ditadura, eles deixam um recado claro. Trata-se de dizer que tais indivíduos podem até escapar do Poder Judiciário, o que não é muito difícil em um país que mostrou, na semana passada, como até quem abusa sexualmente de crianças de 12 anos não é punido. No entanto eles não escaparão do desprezo público.

Esses jovens que apontam o dedo para os agentes da ditadura, dizendo seus nomes nas ruas, honram o país por mostrar de onde vem a verdadeira justiça. Ela não vem de um Executivo tíbio, de um Judiciário cínico e de um Legislativo com cheiro de mercado persa. Ela vem dos que dizem que nada nos fará perdoar aqueles que nem sequer tiveram a dignidade de pedir perdão.

Se o futuro que nos vendem é este em que torturadores andam tranquilamente nas ruas e generais cospem impunemente na história ao chamar seus crimes de “revolução”, então tenhamos a coragem de dizer que esse futuro não é para nós.

Este país não é o nosso país, mas apenas uma monstruosidade que logo receberá o desprezo do resto do mundo. Neste momento, quem honra o verdadeiro Brasil é essa minoria que diz não ao esquecimento. Essa minoria numérica é nossa maioria moral.



Em tempo:

No ano de 2009, um editorial do jornal Folha de S. Paulo teria chamado a ditadura militar (1964 - 1985) no Brasil de “ditabranda”. À época, em sinal de repúdio, indignados diante de tamanha sandice, manifestantes plantaram-se à entrada do referido períódico portando o cartaz abaixo, no qual, criticamente, o chargista e cartunista brasileiro Latuff estiliza a foto dita oficial – rproduzida na abertura desta postagem – do suposto suicídio do jornalista brasileiro Vladimir Herzog (1937 - 1975), que, na verdade, fora torturado e assasinado por agentes da repressão na sede do então Destacamento de Operações de Informações – Centro de Operações de Defesa Interna (DOI-Codi) de São Paulo. Porém, com o intuito de encobrirem a verdade, forjaram uma versão que era a oposta da real, inclusive com direito a registros fotográficos – farsa essa que, era de se esperar, logo foi desmascarada, desmoralizando um regime que, de tão covarde, tripudiava de vidas humanas como bem entendensem e as descartavam quando, para os seus propósitos escusos, elas não tinham mais nenhuma serventia. De que maneira? Criatividade era o que não faltava para o regime militar. Idem para o povo brasileiro...

 



Então! A cena do simulado suicídio de Herzog já estava pronta quando o jovem Sivaldo Leung Vieira, que fazia um curso de fotografia na Polícia Civil de São Paulo, chegou para registrar a fraude – registros esses que, ironicamente, seriam a sua primeira aula prática de fotografia. Localizado pela Folha nos Estados Unidos, onde vive desde 1979, quando fugiu do Brasil, Sivaldo Leung Vieira concedeu uma entrevista exclusiva ao jornalista brasileiro Lucas Ferraz, que, entre outras fortes passagens, diz: "Numa cela, o corpo [de Herzog] pendia de uma tira de pano atada a uma grade da janela. As pernas estavam arqueadas e os pés, no chão. Completavam o cenário papel picado (um depoimento que fora forçado a assinar) e uma carteira escolar". Abaixo, portanto, um detalhe – reproduzido da internet – da mencionada reportagem publicada no dia 5 de fevereiro deste ano.






E em algum lugar do passado...

Divulgação: Instituto Vladimir Herzog


“Quando perdemos a capacidade de nos indignarmos com as atrocidades praticadas contra outros, perdemos também o direito de nos considerarmos seres humanos civilizados...”.

Vladimir Herzog (1937 – 1975)
Filósofo por formação, jornalista por vocação ou, simplesmente, um brasileiro com ideais de revolução.





Bela e profunda frase, a de Herzog. E que bom! Afinal, apesar das adversidades, temos observado que muitos ainda mantêm acesa a chama da esperança, como, por exemplo, os que impulsionam o Levante Popular da Juventude (LPJ) e lhes dão movimento, de que, um dia, mesmo que desconheçamos quando, haverá de raiar a verdadeira liberdade, a verdadeira democracia – não a que pensamos que hoje vivemos. Digo isso porque, sobretudo pelo meu ceticismo, concordo com o escritor e eterno camarada português José Saramago (1922 - 2010), que, apesar de sempre muito realista, não deixou de lado a paixão, típica dos idealistas, ao contrário, a deixou aflorar na sua voz e nos seus gestos, ambos tão eloquentes, ao fazer referência, quando presente esteve no Fórum Social Mundial de 2005, em Porto Alegre, a um fato infelizmente já constatado, ou seja: — A democracia em que vivemos é uma democracia sequestrada, condicionada, amputada...

Nathalie Bernardo da Câmara


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