Foto: Geraldo Guimarães
— Cacilda tinha dez estrelas na testa. E morreu dizendo uma
frase de Beckett em 'Esperando Godot'. O mendigo pergunta: “O que é que você está
fazendo?”. Cacilda, deitada, respondia: “Estou olhando para a lua, que deve
estar cansada de olhar para a terra e ver gente como nós...”.
Tônia Carrero (03 de março de 2018 - 23 de agosto de 1922),
atriz brasileira, em testemunho sobre a também atriz Cacilda
Becker (1921 - 1969), um dos seus maiores desafetos, em entrevista concedida à
jornalista Marisa Raja Gabaglia, no dia 18 de fevereiro de 1974 (trecho da
entrevista que integra o volume IV da série Depoimentos,
produzida pelo extinto Serviço Nacional de Teatro (SNT), com expressivos nomes
da cultura brasileira – entrevistas essas digitalizadas pela Funarte,
encontrando-se, atualmente, no acervo da instituição).
“Sou o meu próprio violino”, disse, certa vez, a
atriz Cacilda Becker, nascida no dia 6 de abril de 1921, em Pirassununga, em
São Paulo, e considerada, por alguns teóricos, a maior atriz do teatro brasileiro, que, ao longo de quase trinta
anos de carreira, encenou 68 peças, fez dois filmes e uma telenovela na extinta
TV Tupi, além de participações em teleteatros na TV Bandeirantes. O início da carreira
artística, portanto, deu-se em 1941, aos 20 anos de idade, quando ela debutou
no Teatro do Estudante do Brasil (TEB), atuando em 3.200
Metros de Altitude, do escritor francês Julien Luchaire (1876 -
1962), e, não demorou muito,
integrou a Companhia de Comédias Íntimas, de Raul Roulien (1905 - 2000), ator e
diretor de cinema e teatro brasileiro, oportunidade em que se afirmou
profissionalmente como atriz na peça Trio
em Lá Menor, de Raimundo Magalhães Jr. (1907 - 1981), jornalista, poeta,
biógrafo, historiador e teatrólogo brasileiro. Em 1943, juntou-se ao Grupo de
Teatro Universitário (GUT), Décio de Almeida Prado (1917 - 2000), um dos mais
importantes críticos de teatro brasileiro, e, no ano seguinte, atuou com a
multifacetada Bibi Ferreira na sua Companhia de Comédias. Depois de alguns anos,
em 1948, foi a protagonista de uma das primeiras peças do Teatro Brasileiro de
Comédia (TBC), sendo – uma exigência sua –, a primeira atriz da companhia com
contrato assinado. Nesse período, ainda encontra tempo para lecionar
interpretação na Escola de Arte Dramática (EAD) de São Paulo. Em 1957, já tendo
o seu talento reconhecido e sendo a mais premiada atriz brasileira, Cacilda
Becker deixou o TBC para, associada a Ziembinski (1908 - 1978), ator e diretor
de teatro, cinema e televisão polonês, mas radicado no Brasil; ao ator e
fotógrafo alemão Fredi Kleemann (1927 - 1974), que emigrou para o Brasil em
1933; ao seu companheiro e ator Walmor Chagas (1930 - 2013) e a irmã Cleyde Yáconis (1923 - 2013), outra
grande atriz, criar o grupo Teatro Cacilda Becker (TCB), no qual permaneceu até
a sua morte, em 1969.
Foto: Ziraldo
Na Passeata dos Cem Mil, no Rio de Janeiro (26/6/1968), as atrizes, Tônia
Carreiro, Eva Wilma, Odete Laura, Norma Bengell e Ruth Escobar protestando
contra o regime militar no Brasil.
1968.
Num ano de grandes turbulências e transformações no Brasil e no mundo – não foi
diferente para Cacilda
Becker,
que se tornou um
dos baluartes da classe artística na luta contra a ditadura militar (1964 -
1985) –, a atriz assumiu a presidência da Comissão Estadual de Teatro da
Secretaria da Cultura, Esporte e Turismo de São Paulo no dia 4 de março, suspendendo,
por questões éticas e temporariamente, a sua atuação nos palcos. Em abril, assinou
um contrato com
a TV Bandeirantes: a partir de maio, iria ao ar o Teatro Cacilda Becker –
teleteatros semanais dirigidos pelo escritor e cineasta brasileiro Walter Georg
Durst (1922 - 1997). Enquanto isso, à frente da Comissão Estadual de Teatro,
ela mobilizou-se em prol de conquistas para a categoria – ao longo da sua
gestão, apesar do período sombrio,
ela contabilizou importantes
conquistas para artistas e produtores, como, por exemplo: conseguiu
quadruplicar as verbas destinadas ao teatro, ao mesmo tempo em
liderava manifestações em defesa da liberdade de expressão e contra a censura. Tanto
que, em junho, quando, dia 5 de junho, no Teatro Ruth Escobar, em São Paulo, numa
produção do Teatro de Arena o espetáculo Primeira
Feira Paulista de Opinião, dirigido por Augusto Boal (1931
- 2009), dramaturgo e ensaísta brasileiro, sofre 71 cortes de censura no dia do
lançamento, Cacilda Becker surge inesperadamente no proscênio, lendo um
protesto contra a repressão, ao mesmo tempo em que se responsabiliza pela apresentação
da peça na íntegra, a qual, dividida em dois atos, tinha como mote uma pergunta
feita aos artistas envolvidos na performance,
ou seja: “O que você pensa do Brasil de hoje?” – um ato de resistência.
Foto: Derly Marques (acervo online do Centro
Cultural de São Paulo).
Reprodução
do texto lido pela atriz Cacilda Becker.
Surpreendentemente,
apesar de ousado e desafiador, o gesto de Cacilda Becker foi de uma convicção tão
intensa que os censores e agentes federais presentes acataram a sua decisão e
assistiram ao espetáculo. No segundo semestre, contudo, sob a alegação de que as
interpretações da atriz na televisão eram subversivas, embora, na verdade,
o real motivo fosse a sua atuação política de combate à censura e à ditadura, a
TV Bandeirantes reincidiu o contrato com a atriz – em protesto, durante o
Festival Internacional da Canção, no auditório do TUCA, na Pontifícia Universidade
Católica (PUC-SP), mais precisamente no dia 15 de setembro, o compositor e
cantor Caetano Veloso deu vivas à Cacilda Becker, homenageando-a.
Na sua autobiografia, a atriz e militante
política Lélia Abramo (1911 - 2004) faz um pungente depoimento, em reverência à colega
de ofício: “Cacilda Becker foi nossa grande defensora sempre que
ocorreram prisões e invasões de teatros. A cada prisão, Cacilda movimentava-se
e conseguia arrancar-nos das mãos do Dops. Nesse período ela mostrou ser, além
de grande personalidade do palco, também uma criatura generosa e combativa. No
meu caso, conseguiu livrar-me de um conhecido torturador em apenas 12 horas de
detenção, e eu sei que quase todos os artistas detidos encontravam nela a mesma
atitude. Cacilda estava sempre à frente; tornou-se a líder da categoria. Ela
não se definia ideologicamente, mas se colocava decididamente contra o arbítrio.
Além de dar apoio nos casos de perseguição policial, apoiava as reuniões
noturnas da categoria que eram feitas nos teatros, após os espetáculos, inclusive
com a presença de estudantes a fim de debater qual atitude tomar diante da
situação”. (ABRAMO, Lélia. Vida e arte: memórias
de Lélia Abramo. São Paulo: Fundação Perseu Abramo/Editora da Unicamp,
1997, p. 175.)
“Não me
peça para dar a única coisa que eu tenho para vender” – Cacilda Becker
Foto: Cristiano Mascaro
Cacilda Becker em um dos ensaios
da peça Esperando Godot, em 1969.
Considerando o teatro a
sua grande paixão, onde viveu a maior parte da sua vida, Cacilda Becker atuava
na montagem do diretor, cenógrafo, jornalista e tradutor brasileiro Flávio
Rangel (1934 - 1988) do texto Esperando
Godot, do escritor e dramaturgo irlandês Samuel Beckett (1906 - 1989), na qual
contracenava com Walmor Chagas – ela interpretando o clochard Estragon e ele no papel de Vladimir, ambos protagonistas
da peça –, quando, no dia 6 de maio de 1969, entre um ato e outro, sofreu um
acidente vascular cerebral – nada mais dramático –, desafinando o violino:
perdeu os sentidos nos braços do companheiro – em junho, no dia 14, em
decorrência do AVC, Cacilda Becker saiu literalmente de cena. Tinha apenas 48
anos de idade.
No dia 15 de junho de 1969, na reportagem Cacilda Becker morre 38 dias depois de
sofrer um derrame cerebral, publicada na Folha de S.Paulo, é
feita uma referência ao ator e crítico Michel Simon (1895 - 1975), francês de
origem suíça, que, na década de 50, após a apresentação, no Teatro das Nações, em
Paris, da peça Pega fogo, do
escritor francês Jules Renard (1864 - 1910), escreve um apaixonado artigo
elogiando a atriz brasileira, que interpreta um menino, Poil de Carotte, comparando-a,
diga-se de passagem, ao ator, diretor e produtor britânico Charlie Chaplin (1889
- 1977), bem como ao ator e diretor francês Jean Louis Barrault (1910 - 1994),
revelando que a performance da
protagonista teve, inclusive, a capacidade de romper a sua pretensa frieza de
especialista, fazendo-o chorar, procura a origem da emoção no “rosto emaciado”,
no “olhar em vírgula (como nos desenhos de Poulbot)”, nos “gestos pletóricos de
garoto infeliz e arrogante” e afirma: — Poil de Carotte não pode ter mais, para
mim e para muitos outros, de agora em diante, outro rosto senão o seu.
Curiosamente, foi exatamente a peça Pega fogo que, antes do sucesso conquistado
na França, garantiu à Cacilda Becker a sua primeira consagração no Brasil. O
tempo passou e, dez anos após a sua morte, no artigo Uma década sem Cacilda, publicado no Jornal do Brasil (15
de junho de 1979), o teatrólogo, crítico teatral e ensaísta polaco-brasileiro Yan Michalski (1932
- 1990), nascido na Polônia, mas radicado no Brasil, escreve: — Não temos até
hoje outra atriz-fenômeno como Cacilda, com a mesma generosidade de entrega, a
mesma capacidade de mergulhar até o fundo em cada personagem, a mesma
inquietação, tenacidade, a mesma coragem na composição, pedra por pedra, de um
repertório coerente. [...] Uma pessoa com este carisma, com esta capacidade de
falar legitimamente em nome de todo o teatro brasileiro e sempre disposta a fazê-lo
com firmeza e serenidade talvez seja o que mais nos faz falta desde que Cacilda
desapareceu...
Colecionadora
de protagonistas, interpretando as mais diversas personagens, transitado entre
a tragédia e o clássico moderno, além de ter sido uma das mais completas
atrizes de teatro do Brasil de todos os tempos, Cacilda Becker foi deveras mais
do que uma atriz, pois alçou ao status
de diva, tornando-se um mito do teatro nacional. Hoje, portanto, se viva, ela
estaria completando 93 anos de idade – no dia 25 de janeiro de 1988, foi inaugurado o Teatro
Cacilda Becker, no bairro do Catete, no Rio de Janeiro, sendo, contudo, desde
1991, um espaço especializado em espetáculos de dança, administrado pela
Funarte. Cedido às companhias mediante edital de concorrência pública, o teatro
oferece infraestrutura a preço baixo (10% da bilheteria), permitindo, ainda, a
cobrança de ingressos mais baratos do que a média dos espetáculos no país.
Nathalie Bernardo da
Câmara
Um poema...
Foto: Fredi Kleemann
ATRIZ
A morte emendou a gramática.
Morreram Cacilda Becker.
Não era uma só. Era tantas.
Professorinha pobre de Piraçununga
Cleópatra e Antígona
Maria stuart
Morreram Cacilda Becker.
Não era uma só. Era tantas.
Professorinha pobre de Piraçununga
Cleópatra e Antígona
Maria stuart
Mary Tyrone
Marta de Albee
Margarida Gauthier e Alma Winemiller
Hannah Jelkes a solteirona
a velha senhora Clara Zahanassian
adorável Júlia
outras muitas, modernas e futuras
irreveladas.
Era também um garoto descarinhado e astuto: Pinga-Fogo
e um mendigo esperando infinitamente Godot.
Era principalmente a voz de martelo sensível
martelando e doendo e descascando
a casca podre da vida
para mostrar o miolo de sombra
a verdade de cada um dos mitos cênicos.
Era uma pessoa e era um teatro.
Margarida Gauthier e Alma Winemiller
Hannah Jelkes a solteirona
a velha senhora Clara Zahanassian
adorável Júlia
outras muitas, modernas e futuras
irreveladas.
Era também um garoto descarinhado e astuto: Pinga-Fogo
e um mendigo esperando infinitamente Godot.
Era principalmente a voz de martelo sensível
martelando e doendo e descascando
a casca podre da vida
para mostrar o miolo de sombra
a verdade de cada um dos mitos cênicos.
Era uma pessoa e era um teatro.
Morrem mil Cacildas em Cacilda.
Carlos
Drummond de Andrade
(1902 - 1987)
Livro recupera percurso profissional de Cacilda Becker
22 de julho de 2013
Maria Eugênia de
Menezes - O Estado de S.Paulo
Nossa memória
é curta. O cronista Ivan Lessa definia bem essa particularidade nacional.
Gostava de dizer que, a cada 15 anos, o brasileiro esquece os últimos 15 anos.
Mas será possível esquecer Cacilda Becker? Maria Thereza Vargas, reconhecida
estudiosa do teatro brasileiro, acredita que sim. "Corremos esse
risco", diz. "É como se a imagem dela já estivesse se apagando."
Cacilda
Becker: Uma Mulher de Muita Importância é uma tentativa de manter nítidos
os contornos dessa figura. No livro, lançado recentemente pela Imprensa
Oficial, Maria Thereza recupera, com imagens, relatos e análises, os passos
daquela que foi nossa atriz maior.
As mais de 150
páginas do volume não trazem uma descrição distanciada, com o verniz próprio
das biografias, mas o testemunho de quem acompanhou de perto parte
significativa dessa trajetória. A autora tem recordações dos episódios que está
a narrar. Os sofrimentos de Cacilda, os anos de ouro no TBC - Teatro Brasileiro
de Comédia, a maturidade artística e o ímpeto de ter uma companhia própria.
"Já contei tantas vezes essa história que estou me repetindo",
confessa a pesquisadora.
Em 1983, ela
havia organizado, ao lado de Nanci Fernandes, o título Uma Atriz: Cacilda Becker. Lá, a intenção era elencar pessoas que foram
determinantes para a intérprete. A influência de Maria Jacintha, diretora do
Teatro do Estudante. O papel de Alfredo Mesquita, à frente do Grupo
Experimental e da EAD - Escola de Arte Dramática. Os depoimentos de encenadores
estrangeiros - como Ziembinski, Luciano Salce, Ruggero Jacobbi - sobre seu
estilo de interpretação.
Nessa nova
obra, o resultado tem sabor diferente. Ainda que continue voltado a seu
percurso profissional, revela um pouco mais sobre a vida da Cacilda,
especialmente na juventude. Outro acréscimo significativo são as críticas que
ela recebeu, tanto no teatro como no cinema.
Fúria santa ou a santa fúria de Cacilda Becker
Na Revista de História da
Universidade de São Paulo (USP), n° 151, dezembro de 2004, pp. 229-234, uma
resenha, de autoria de Joceley Vieira de Souza, então mestrando em História
Social - FFLCH/USP, sobre o livro Cacilda Becker: fúria santa, de Luís André do
Prado. São Paulo: Geração Editorial, 2002, 623 p. (Ilustrado).
Link para a resenha:
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