7
de abril de 2014
Lúcia Guimarães - O Estado de S.Paulo
O fiasco da pesquisa do
Ipea sobre a tolerância social ao estupro fez vítimas além dos burocratas
atrapalhados. Não falo de mais um arranhão na imagem do Brasil que, a julgar
pelo que se lê no exterior, está se tornando um líder em know-how-not. Como não
preparar eventos esportivos, combater violência, corrupção e reformar a
economia.
A agulha do meu
asneirômetro bem que disparou, o que não me impediu de sair repetindo o
"erro da planilha" inflacionando o número de neandertais que
justificam estuprar uma mulher dependendo do decote ou do comprimento da saia.
As vítimas a que me refiro são as mulheres brasileiras que serão estupradas
este ano, cujo sofrimento não será evitado pelo circo viral em torno da
pesquisa e poderá ser agravado pela erosão da credibilidade sobre o que é, sim,
uma epidemia de saúde pública.
Se continuar a tendência
revelada em 2012, o número de mulheres à espera de seu agressor no Brasil este
ano pode passar de 50 mil. Mas o número, tal como a estatística do Ipea, não
inspira confiança porque há uma diferença entre casos de estupro registrados e
ocorridos. O crime sexual é a forma de violência mais estatisticamente
subestimada do mundo, não importa se num país de burkas ou de fios dentais. E,
como sabemos, o crime sexual frequentemente se passa entre conhecidos ou em
famílias. Para se ter uma ideia, nos Estados Unidos, em 2010, o FBI registrou
85.593 estupros ou tentativas de estupro. No mesmo ano, o censo americano para
estatísticas de justiça registrou 188.380 vítimas de estupro e assalto sexual.
Ainda no mesmo ano, o prestigiado Centers for Disease Control, uma agência
nacional de saúde, contou 1 milhão 300 mil incidentes numa pesquisa sobre
violência sexual entre parceiros íntimos, algo que pode incluir estupro nas
mãos do marido ou ser perseguida e agredida por um ex-parceiro. Não é só o Ipea
que sofre de confusão metodológica. Parte da confusão vem da definição de crime
sexual que, aqui, varia de Estado para Estado.
Só em 2012, o governo
federal americano instruiu o FBI a atualizar sua definição de estupro que
datava de 1927. Pela primeira vez, a definição estupro não discrimina sexo e a
penetração à força pode ser com um objeto. E o estado da vítima - incapacitada
por álcool ou drogas de dar consentimento - passou a ser considerado argumento
para acusação de estupro.
No começo do ano, quando
a Casa Branca anunciou uma iniciativa para combater violência sexual no câmpus
universitário, uma das mais conhecidas ONG's de militância antiestupro e
incesto se manifestou contra a ideia da "cultura do estupro" e pediu
que os crimes sejam individualizados. A reação veio num debate passional. O que
é a cultura do estupro? De maneira geral, esta expressão, nascida nos anos 70,
se refere à desinformação da sociedade, à impunidade dos agressores, à
representação social da mulher como objeto e a fatores como tradições sociais
específicas.
Na segunda-feira
passada, uma carta anônima sob o título "Dear Harvard: You Win"
(Querida Harvard: Você venceu), publicada no jornal da mais conhecida
universidade americana, relatava o drama de uma estudante. Ela passou parte de
2013 se queixando a diversas autoridades no câmpus do que descreve como um
assalto sexual sofrido no seu dormitório, nas mãos de um colega e amigo que
visitou depois de beber demais. A descrição do alegada agressão é perturbadora.
A carta se tornou viral
e obrigou a Universidade de Harvard a revisar sua estreita definição de assalto
sexual, publicada em 1993. A estudante capitulou e anunciou que vai se mudar do
dormitório para não conviver diariamente com o jovem que acusa de agressor.
A expressão
"segundo estupro" é usada para descrever a experiência degradante
vivida por mulheres que decidem denunciar violência sexual, quando a justiça,
as instituições, a família ou os amigos culpam a vítima, não levam a sério a
acusação ou protegem os agressores. Certamente a falsa acusação de estupro pode
destruir a vida de um acusado. Por se tratar, na esmagadora maioria dos casos,
de um crime sem testemunhas, investigar e conduzir processos é um enorme
desafio.
Mas se há algo que a
pesquisa do Ipea revelou, não nas suas planilhas atrapalhadas, mas no
ecossistema do debate social, é a mesma praga da polarização que faz tantas das
nossas mazelas passarem pelo moedor ideológico. Quando a pesquisa saiu,
testemunhei inúmeras manifestações de triunfo pela confirmação do nosso atraso.
Quando o erro foi revelado, cantaram vitória os que se sentem oprimidos pelo esquerdismo
infantil.
O crime sexual, muito
mais do que outras formas de assalto, é um tormento que pode seguir a vítima
pelo resto da vida. Agora, vamos parar de envergonhar o Ipea e nos envergonhar
todos para promover a tolerância zero a qualquer forma de agressão sexual.
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