quinta-feira, 25 de junho de 2009

VAI UM NOBEL?



“Eu não tento convencer, mas informar...”.

Noam Chomsky

Lingüista e ativista político norte-americano

NÃO! – esbravejou, batendo o pé, como se diz lá pelas bandas do Ceará, Brasil, um desalmado general Emílio Garrastazu Médici (1905 - 1985), diante da candidatura do arcebispo de Recife e Olinda, o genuíno dom Helder Câmara (1909 - 1999), ao Nobel da Paz de 1970. Pior! Nem agradeceu e, ainda, achando pouco, desafiou a representatividade das entidades religiosas e humanitárias de diversos países que apoiavam a candidatura de dom Helder não somente por sua atuação em movimentos sociais, mas, sobretudo, por ser, reconhecidamente, uma liderança da luta em defesa dos direitos humanos e da manutenção da paz mundial, sem falar que ele se tornou a voz dos que não tinham voz para denunciar ao mundo as torturas cometidas pelo regime militar no Brasil.


Regime esse que, pela superlotação dos camburões e das cadeias, pelos desaparecidos a perder de vista, parecia – tudo indicava – que seria ad aeternum. O general linha-dura, por sua vez, ardiloso que era, articulou um complô para lá de medonho, capaz de pôr medo até na turma do Saci-Pererê, costurando tanto as suas bordas e babados que nem uma rendeira acostumada com bilros conseguiria desfazer os pontos. E haja ponto-cruz! O que nos permite dizer que a conspiração armada por Médici foi bem articulada, tal qual à que instaurou a ditadura militar no Brasil no dia 1° de abril de 1964. E dois livros tratam do assunto: Temas da política internacional, de Vasco Mariz, Topbooks, 2008, e Dom Helder: entre o poder e a profecia, de Nelson Piletti e Walter Praxedes, Ática, 1997.


Para os autores de ambos os livros, o complô de Médici foi tão competente que contou com colaborações dantes nunca pensadas. E a mais valiosa das contribuições à trama armada chamou-se persuasão, que, aliás, atuou em mais de uma frente. Segundo Vasco Mariz, no capítulo Dom Helder Câmara e o prêmio Nobel da Paz que o Brasil não quis, foram convidados para uma reunião no Palácio do Planalto presidentes e diretores de empresas escandinavas que, à época, atuavam no Brasil, como a Volvo, a Scania Vabis, a Ericsson, a Facit, a Nokia e por aí vai, solicitando que eles interviessem junto à Fundação Nobel para evitar a atribuição do prêmio a dom Helder. Porém, o dramático viria depois, quando os convidados disseram que não poderiam intervir no caso.


Violentamente, “o oficial general que presidia a reunião deu um murro na mesa e anunciou: se os senhores não intervierem com firmeza e dom Helder receber o prêmio, então as suas empresas no Brasil não poderão mais remeter um centavo de lucros para as respectivas matrizes. Ficou bem claro?”. Deve ter ficado, já que dom Helder não recebeu o prêmio. Já para Nelson Piletti e Walter Praxedes, no capítulo Quaisquer que sejam as conseqüências, a cada nova aparição pública de dom Helder, o medo dos militares brasileiros do prestígio do nordestino cabeça-chata só aumentava. E aumentou ainda mais quando, no dia 17 de maio de 1970, o jornal norte-americano Sunday Times mencionou-o como “o homem de maior influência na América Latina, depois de Fidel Castro”.


Os militares, contudo, dom Helder tirava de letra, já o silêncio do amigo Paulo VI... O descontentamento do Vaticano com as posições políticas do pequeno Fidel Castro de batina era evidente. Mas, não demorou muito, o Papa se entendeu com dom Helder, que, em suas viagens ao estrangeiro, apesar de controladas pelo Vaticano, soltava o verbo. Certa vez em Paris, autoridades eclesiais e leigas cobraram-lhe que ele falasse a verdade sobre a realidade brasileira daquele momento e denunciasse as torturas que eles “sabiam existir” no Brasil. Dom Helder o fez. Com minúcias. E não deu outra. De um lado, os militares soltavam fumaça pelas ventas e, de outro, o Vaticano se penitenciava aos pés as cruz. O jornal O Estado de São Paulo, por sua vez, também não deixou por menos.



Um caso... “No dia 26 de maio de 1969 o Comando de Caça aos Comunistas - CCC seqüestrou, torturou e matou o padre Antônio Henrique Pereira Neto em Pernambuco. Coordenador da Pastoral da Arquidiocese de Olinda e Recife, ao lado do arcebispo dom Helder Câmara, de quem era braço direito, Antônio Henrique desenvolvia atividades contra os métodos de repressão usados pelo regime. O corpo foi deixado em um matagal da cidade universitária do Recife. Padre Antônio Henrique estava pendurado pelos pés em um galho de árvore; trazia marcas brutais de tortura, como queimaduras de cigarro, castração da genitália, marcas de espancamento, cortes profundos em todas as partes do corpo e dois ferimentos de bala que indicavam a execução final. Dom Helder repudiou a violência da ditadura militar. Após divulgar um manifesto de apoio à ação católica operária no Recife, ficou proibido pelo regime de falar em público no Brasil. Diante da morte do padre Antônio Henrique, as relações da igreja católica com a ditadura militar deterioraram-se de vez, fazendo com que a primeira atuasse de forma decisiva contra o regime, combatendo-o, veementemente, até o fim”. – Jeocaz Lee-Meddi, escritor brasileiro.

Implacável, O Estado de São Paulo atacou dom Helder, alegando que as denúncias que ele fez eram parte da sua “campanha eleitoral para conseguir o Nobel da Paz”, enquanto, na Igreja católica, conservadores tentaram a todo custo boicotar a sua candidatura. Em vão, já que competente estava sendo o embaixador brasileiro em Oslo, Jaime de Souza-Gomes, que se empenhava, cada vez mais com sucesso, na inviabilização da candidatura de dom Helder, valendo-se de um inescrupuloso dossier contra o arcebispo, que contou com a colaboração do jornalista brasileiro Júlio de Mesquita Neto, diretor proprietário de O Estado de São Paulo, que não se negou a participar do esquema a pedido do empresário norueguês Tore Munch, que, desde o início, aderiu ao embalo da insensatez de Médici.



“Nunca soube do fato...”, garantiu dom Helder, em 1997, quando tomou conhecimento, através do livro de Piletti e Praxedes, da campanha secreta movida por Médici contra a sua candidatura ao Nobel da Paz, envolvendo, inclusive, o embaixador do Brasil na Noruega, Jaime de Souza-Gomes.


A partir, então, do dossier, uma campanha difamatória contra dom Helder foi movida na imprensa norueguesa, abalando, de certa forma, a opinião pública internacional e influenciando o Comitê do Parlamento da Noruega, responsável pela atribuição do Nobel. E Médici, que pegou pesado para satisfazer os seus interesses nada escusos, foi de uma habilidade sem precedentes em tão macabro alinhavo, terminando por alcançar os seus propósitos. Resultado: o Nobel da Paz de 1970 não foi atribuído a dom Helder. O mais curioso é que o imbróglio e o embrolamento não pararam por aí. Repetiram-se, ainda, em 1971, 1972 e 1973, anos em que dom Helder voltou a ser candidato ao mais prestigiado dos prêmios do planeta – em 1972 foi o único candidato e o prêmio não foi atribuído.



“Mesmo dentro do Brasil, Dom Helder era considerado persona non grata. Censurado, nada do que o arcebispo vermelho falava era reproduzido ou noticiado pela mídia de nosso país. A outra razão: ciúmes da Cúria Romana. Esta considerava uma indelicadeza, por parte da comissão norueguesa do Nobel da Paz, conceder a um bispo do Terceiro Mundo um prêmio que, primeiro,
deveria, ser dado ao papa...”.

Frei Beto
Escritor e teólogo


Intransigente, Médici, não desistia. E insistia em negar a possibilidade de o arcebispo vir a ser laureado, sempre a entoar o bordão: — NÃO!NÃO!NÃO! O Brasil não quer o Nobel da Paz. Não para dom Helder. Só que o Brasil queria, sim. Quem não queria era Médici. Covarde, o general linha-dura tinha receio de que, laureado, dom Helder ganhasse maior visibilidade internacional e botasse ainda mais a boca no trombone, denunciando ao mundo os horrores cometidos pela ditadura militar no Brasil e, sobretudo, as atrocidades patrocinadas sob os auspícios de os anos de chumbo (1969 - 1974), como ficaram conhecidos os anos que ele desgovernou o país.




Obviamente que quem tinha juízo deixava-o. Ao slogan, contudo, do governo Médici, o povo complementava, insatisfeito: “O último a sair apaga a luz do aeroporto”. E muitos embarcaram. Se não em aviões, em paus-de-arara. Alguns com direito à ida e volta; outros não. O fato é que como o Nobel da Paz de 1972 teve apenas um único candidato, que foi dom Helder, o prêmio não foi atribuído a mais ninguém e continua sem dono. Existe até quem, por isso, anda propondo a candidatura post mortem de dom Helder à vaga pendente. Porém, resta saber se isso é possível, levando em consideração, óbvio, que ninguém, em sã consciência, não recusa um prêmio da envergadura do da paz, como o fez Médici...


Curiosidade: Dom Helder Câmara pode não ter recebido o Nobel da Paz, atribuído pelo Comitê do Parlamento da Noruega, mas, em 1974, em Oslo, na Noruega, organizações cristãs e populares da Escandinávia e da Alemanha outorgaram-lhe o Prêmio Popular da Paz.


Em tempo:

Alfred Nobel (1833 - 1896)



A pesar de a Fundação Nobel ter sido fundada em 1900, em função de uma cláusula do testamento do engenheiro químico e industrial sueco Alfred Nobel, o inventor da dinamite, do detonador e de mais de trezentas invenções, os primeiros prêmios só passaram a ser concedidos em 1901. À época foi criada uma medalha comemorativa provisória [1ª ilustração desta postagem], esculpida pelo artista sueco Rune Karlzon, em homenagem a Alfred Nobel, aos seus inventos, atividades e empreendimentos. Na frente da medalha, foi, então, esculpido um retrato de Nobel, com a inscrição creavit et promovit, e, no verso, um túnel por explodir com dinamite e um detonador. Agora, conheçamos um pouco mais da biografia de dom Helder e da de Alfred Nobel. Vidas que, de certa forma, apesar de trajetórias completamente distintas e ambas com as suas adversidades, tiveram um interesse em comum, ou seja, o bem estar e a paz da jumanidade.









A VOZ DOS SEM-VOZ

“Quem me dera ser leal, discreto
e silencioso como a minha sombra...”.

Dom Helder


Muitos foram os adjetivos atribuídos a dom Helder Câmara, afora os que eu já citei, fossem elogiosos ou pejorativos, ou seja: bispo vermelho; bispo da subversão; bispo de todos; cabo de esquerda; santo; comunista; padrezinho; peregrino da paz e irmão dos pobres; aprendiz de ditador; gnomo de batina; cata-vento; boneco falante; místico; poeta; profeta; falso profeta; profeta da liberdade; profeta da paz; pastor da utopia; irmão universal; arcebispo das favelas; filho do Nordeste... O quadrilátero da fome e da miséria, contra as quais ele lutava e tentava combater, conter, erradicar – luta e combate esses que pontuaram a maior parte da sua vida.

Mas, afinal, quem foi dom Helder Câmara? Simplesmente mais um humanista, que buscou a justiça social? Um elo entre os conceitos do sagrado e do profano? Vejamos...

Vindo ao mundo no dia 7 de fevereiro de 1909, mais precisamente no Brasil, que auto se denomina o maior país católico do mundo, e mais precisamente ainda em Fortaleza, no Ceará, em uma casa onde hoje funciona o Mercado Central da cidade, dom Helder quase ganhou nome de santo, já que a mãe, Adelaide Rodrigues Pessoa Câmara, uma professora primária, que o alfabetizou, quis lhe dar o nome de José. O pai, contudo, o contador, jornalista e crítico de arte João Eduardo Torres Câmara Filho, achou mais sensato consultar um mapa-múndi e, lá pelas tantas, se deparou com o nome Helder, uma cidadela ao norte da Holanda, cujo significado é luminoso, límpido, indicando sobriedade e carisma.




A mãe, Adelaide Rodrigues Pessoa,
e o pai, João Eduardo Torres Câmara Filho.

Logo cedo, portanto, o pequeno Helder, o 11° de treze filhos, demonstrou certo pendor para a vida religiosa, já que costumava brincar de montar altar e celebrar missa. Aos poucos, contudo, a brincadeira virou aspiração; a aspiração virou sonho e, apesar de predisposto a tornar o sonho realidade, encontrou resistências. O pai, maçom, não o acalentou; depois, vieram o tifo e uma epidemia de crupe, que ceifou vários dos seus irmãos. Porém, determinado, ingressou no seminário aos quatorze anos de idade e, aos vinte e dois, em 1931, realizou o sonho de ser padre, embora mediante uma autorização especial do Vaticano, já que não tinha a idade mínima exigida para ordena-se.





Helder seminarista





Inicialmente, dedicou-se ao Movimento da Juventude Operária Católica e, em 1931, a Legião Cearense do Trabalho. Sempre em busca, pensou ter encontrado um meio termo para o socialismo e o capitalismo e aderiu ao integralismo, movimento que tem como base o fascismo italiano. A simpatia, contudo, pela novidade, não durou muito. Em 1936, transferido para o Rio de Janeiro, foi a vez de aderir à Ação Católica, embrião da Ação Popular, que pregava a renovação das práticas da Igreja e se preocupava com a criação de uma ordem social mais justa. Sagrado bispo em 1952, foi um dos fundadores da Confederação Nacional dos Bispos do Brasil - CNBB.






No Rio de Janeiro, em 1952, dom Helder preside
a assembléia de fundação da Confederação Nacional
dos Bispos do Brasil - CNBB, e faz uma conferência
em Roma, durante o Concílio Vaticano II.



Durante doze anos, além de bispo e arcebispo do Rio de Janeiro, assumiu a secretaria geral da CNBB e, em 1964, tornou-se arcebispo de Recife e Olinda. De 1962 a 1965, dom Helder participou do Concílio Vaticano II e, apesar do tamanho, não passou despercebido. Concentrou-se em empenhar todos os seus esforços na defesa de uma reforma interna na Igreja católica, começando pela substituição do latim em celebrações, catequeses, orações e cantos pela língua viva de cada país, o que incentivaria a participação dos fiéis. Quando do golpe militar no Brasil, que se instaurou no país em abril de 1964, dom Helder tornou-se uma referência. Boa.


Com João XXIII; com o cardeal Montini,
futuro Paulo VI, em uma favela do Rio de
Janeiro, e com João Paulo II.



Acima da direita e da esquerda, era um idealista, evitando, muitas vezes, conflitos e confrontos com os militares. Porém, ao pregar para eles, na esperança de converter os propósitos golpistas, foi visto como comunista e, após o Ato Institucional Nº 5 – AI-5, em 1969, passou a ser alvo de perseguições e represálias, com pessoas diretamente ligadas a ele sendo vítimas de prisão, tortura e morte. No entanto, antes mesmo do AI-5, o Palácio Episcopal onde morava na avenida Rui Barbosa, bairro de Manguinhos, em Recife, foi metralhada, além dos telefonemas anônimos, das ameaças de morte, dos insultos e palavrões nos muros da sua residência oficial.


Quando, no dia 26 de maio de 1969, o Comando de Caça aos Comunistas - CCC seqüestrou, torturou e matou o padre Antônio Henrique Pereira Neto em Pernambuco, coordenador da Pastoral da Arquidiocese de Olinda e Recife, dom Helder percebeu que o assassinato do seu braço direito era um aviso. Para ele. Segundo Frei Beto, em seu artigo O Dom Helder que conheci, de 18 de fevereiro de 2009 e publicado na revista Fórum, o arcebispo teria dito em carta escrita no dia 27/28 de maio de 1969: “No necrotério, vivi uma avant-première de minha própria morte”. Não sabia dom Helder que já havia quem pensasse nessa possibilidade...




“Porém, o regime autoritário no Brasil não chegou ao ponto de executar contra o arcebispo de Recife um plano que o capitão Sérgio Miranda de Carvalho atribuiu ao brigadeiro João Paulo Burnier, segundo o qual, se ‘... pretendia, entre outras coisas... lançar a de um avião para a morte no mar, dom Helder Câmara...’, conforme escreveu o jornalista Jânio de Freitas”.

Nelson Piletti e Walter Praxedes
Dom Helder: entre o poder e a profecia




No dia 12 de março de 1968, dom Helder deixou
o Palácio Episcopal e se mudou para uma
simples dependência da igrejinha das Fronteiras,
na rua Henrique Dias, onde morou até a sua morte.
Quem batia a sua porta era recebido pelo próprio
Dom Helder, sobretudo os mais necessitados,
conhecidos ou não, que, de certa forma,
sabiam que seriam amparados por ele.
Um dia, contudo, em pleno regime militar,
dom Helder recebeu um homem que lhe c
onfessou ter sido pago para matá-lo... Não matou.




Em Paris, com Maria José D. Cavalcanti (Zezita),
sua secretaria por trinta e cinco anos; a teóloga,
escritora e militante feminista brasileira Ivone Gebara
que, incansavelmente, acompanhava dom Hélder
em suas longas jornadas nas favelas de Olinda e Recife,
assistindo quem precisava, respeitando, inclusive,
os seus direitos e as suas liberdades individuais...
Não foi a toa que o inquisidor Josef Ratzinger,
à época em que presidia a Congregação para a
Doutrina da Fé, puniu a religiosa por diversas vezes,

inclusive ao silêncio obsequioso, apenas por ela,
publicamente, se manifestar a favor da descriminação
do aborto, além de defender o uso do preservativo
e o controle de natalidade. Destemida, Gebara
releva os carões e faz, ainda, duras críticas à Igreja católica;

crianças correm para os braços de
dom Helder – todos, não importava o motivo,
buscavam os seus sábios conselhos.





Com o presidente Juscelino Kubitschek (1956-1960);
com o presidente João Goulart (1961-1964) e na véspera
do golpe militar de 1° de abril de 1964, com o general
Humberto Castello Branco (1964-1967),
presidente da junta militar que, à época, governava o Brasil.




Em 1970, no Recife, Dom Helder recebe o pastor
batista norte-americano Ralph Abernathy,
sucessor do líder pacifista norte-americano
Martin Luther King, morto assassinado.
Os dois lançam uma nota em defesa das lutas
pela justiça por métodos pacíficos; em 1973,
com o Dalai Lama, nos Estados Unidos; em 1974,
foi convidado a falar no Fórum Econômico
Mundial de Davos, na Suíça.




Dom Dedé e dom Helder: incomparáveis...



Em 1985, aos setenta e seis anos, o homem que, habitualmente, falava com a voz, mansa, mas sincera e enfática, que costumava falar com as mãos, com os braços, com todo o seu corpo, sempre em pé, aposentou-se do arcebispado, mas não da batina branca surrada. Assumiu o seu lugar, na Arquidiocese de Recife e Olinda, o ultraconservador dom José Cardoso Sobrinho, mais conhecido como dom Dedé. Foi demais para dom Helder. Afinal, em um piscar de olhos, ele viu o seu trabalho de vinte e dois anos à frente da Arquidiocese de Recife e Olinda ruir. Entre os desmandos de dom Dedé, o fechamento do Instituto de Teologia do Recife - Iter e o Seminário Regional Nordeste II - Serene II, mas silenciou em respeito à hierarquia da Igreja Católica. Desde então, dom Dedé só tem colocado os pés pelas mãos.




Dom Hélder e a Imprensa


O Prêmio Dom Hélder Câmara de Imprensa
foi instituído pela Assessoria de Imprensa da Conferência
Nacional dos Bispos do Brasil - CNBB em 2002,
quando a CNBB celebrou os 50 anos de sua criação.
Foi criado com o objetivo de premiar pessoas e
trabalhos jornalísticos cujos objetivos coincidam
com as propostas da Igreja no Brasil. Ao dar-lhe
o nome de Dom Helder Câmara ao novo prêmio de
comunicação da CNBB, a Assessoria de Imprensa
quis prestar uma homenagem ao fundador da
Conferência dos Bispos do Brasil, reconhecidamente
um grande comunicador. O troféu Dom Hélder
Câmara de Imprensa traz a escultura de um cajado,
símbolo do Pastor, cuja missão é a de proteger
e defender a vida das ovelhas, lhes assegurando
pastagem e matando a sua sede. O cajado é sua arma
para afugentar tudo que ameaça as ovelhas.

1909 - 2009



No ano do centenário do seu nascimento,
foi lançado nacionalmente o selo comemorativo
O Pastor da paz, pela Empresa Brasileira
de Correios e Telégrafos - ECT.




Em abril, ainda em homenagem ao centenário
de dom Helder, o Senado Federal, em Brasília,
foi palco da avant-première do documentário
Dom Hélder Câmara: o Santo Rebelde,
da pesquisadora e cineasta mineira Érika Bauer,

produzido pela Cor filmes.





Temos de entrar no Terceiro Milênio sentados à mesa,
comendo, saudáveis, fraternos, abrigados
do frio, da chuva e do vento...”.

Dom Helder Câmara


O que pensam de dom Helder...


Leonardo Boff, escritor e teólogo
“Dom Helder, mais que pastor e profeta, foi um homem inteiro. Nele
a humanidade reluzia na sua forma mais eminente”.

Frei Betto, escritor e teólogo
“Homem de mil atividades, dotado de profundo senso crítico, Dom Helder tinha o dom de dialogar com qualquer pessoa, de qualquer nível. Figura muito carismática, difícil alguém considerá-lo inimigo depois de falar pessoalmente com ele, ainda que continuasse a discordar de suas idéias”.

Dom Luciano Mendes, arcebispo de Mariana
“Dom Helder percorreu o mundo para pregar o fim da violência e do racismo, o fim das guerras e das desigualdades sociais. Ele mostrou o absurdo de se gastar com as armas dinheiro que seria suficiente para alimentar as multidões do terceiro mundo. Ele não criticava ninguém”.

Cardeal Danneels, arcebispo de Malines – Bruxelas
“Dom Helder, por sua palavra e seu exemplo, deu a milhões
de pobres e oprimidos a força de se levantarem e de andarem”.

Monsenhor Gilson, arcebispo de Sens-Auxerre e bispo da Missão de França
“Um verdadeiro profeta. Dom Helder foi um grande testemunho da Igreja servidora e pobre”.

Jean-Claude PetitLa Vie
“Este político, diria Charles Péguy, era antes de tudo um místico”.

Bernard JouannoPèlerin magazine
“Dom Helder foi uma grande testemunha do século XX. Sua voz pode iluminar aquilo que vem. Vamos escutá-la”.

Le Monde
“Célebre e controvertido, ele era pura e simplesmente, como quer o Evangelho, o amigo dos pobres”.

Alceu Amoroso Lima, escritor
“[Propus] que ao texto [a ser enviado ao Sínodo pelo plenário da Pontifícia Comissão Justiça e Paz] em que figuravam os nomes de Ghandi e de Luther King se acrescentasse o de Helder Câmara. Temia alguma reação, tal a campanha de difamação com que, no Brasil, conseguiram evitar que o Prêmio Nobel da Paz fosse, pela primeira vez, atribuído a um brasileiro. Mas, pelo contrário, foi essa a única proposta recebida com aplausos. Os profetas só são reconhecidos fora de sua pátria, como os Evangelhos nos dizem e como a experiência da história o confirma”.

Maria Luíza Fontenele, socióloga
“Aquela figura minúscula conseguia se agigantar, era um eco na luta pela liberdade. Na luta pela anistia, sabíamos que podíamos contar com ele, que colocava todo o seu compromisso naquilo que acreditava. Por isso hoje, na luta em nome da verdade e da memória, ele ainda se faz presente”.

Francisco Auto Filho, filósofo
“Dom Helder foi o maior apóstolo da liberdade e da justiça social que a Igreja católica produziu no séc. XX. E, como a liberdade não é plena e a justiça social ainda não se efetivou no Brasil, cultivar a sua memória é exercício de cidadania política e cultural”.







Mensagem de dom Helder Câmara
Escrito por Frei Betto
03-Fev-2009

De: HelderCamara@ceu.com

Para: amigos e amigas

Queridos: estivesse entre vocês, a 7 de fevereiro comemoraria 100 anos de idade. Quis o bom Deus, entretanto, antecipar-me a glória de desfrutar Sua visão beatífica. Aliás, o Céu nada tem daquela imagem idílica que se faz na Terra. Nada de anjos harpistas e nuvens cor-de-rosa, embora a música de Bach tenha muita audiência.

Entrar na intimidade das três Pessoas divinas é viver em estado permanente de paixão. Arrebatado por tanto amor, o coração experimenta uma felicidade indescritível.

A propósito, outro dia, Buda, de quem sou vizinho, me contou esta parábola que bem traduz o caminho da felicidade: numa feira da Índia, entre tantos restos de frutas e legumes, uma mulher fitava detidamente o chão. Viram que procurava algo. Um e outro perguntaram o quê. "Uma agulha". Não deram importância. Porém, quando ela acrescentou que se tratava de uma agulha de ouro, multiplicou o número dos que a auxiliavam na busca.

Súbito, um deles perguntou: "A senhora não tem idéia de que lado da feira a perdeu?" "Não foi aqui na feira", respondeu a mulher, "perdi-a em casa". Todos a olharam indignados. "Em casa?! E vem procurar aqui fora?" A mulher fitou-os e retrucou: "Sim, como vocês procuram a felicidade nas coisas exteriores, mesmo sabendo que ela se encontra na vida interior".

O Céu é terno, o que não impede que experimentemos indignações. Jesus não fez a fome e a sede de justiça figurar entre as bem-aventuranças? Quando olho daqui para a Igreja Católica confesso que sinto, não frustração, mas uma ponta de tristeza. O papa Bento XVI não transmite alegria e esperança. Faltam-lhe o profetismo de João XXIII e a empatia de João Paulo II.

Padres cantores atraem mais discípulos do que aqueles que se dedicam aos pobres, aos lavradores sem-terra, às crianças de rua, aos dependentes químicos. Nas showmissas os templos ficam superlotados, enquanto nos seminários o ensino de filosofia e teologia costuma ser superficial.

A vida de oração não é estimulada, muitos buscam o sacerdócio para obter prestígio social e, por vezes, o moralismo predomina sobre a tolerância, o triunfalismo supera o espírito ecumênico. Até quando homossexuais serão discriminados por quem se considera discípulo de Jesus?

Alegra-me, porém, saber que as Comunidades Eclesiais de Base estão vivas e se preparam para realizar o seu 12º encontro inter-eclesial, em Rondônia, no próximo julho. Dou graças a Deus ao constatar que o CEBI – Centro de Estudos Bíblicos – conta com mais de 100 mil núcleos espalhados pelo Brasil, integrados por gente simples interessada em ler a Bíblia pela ótica libertadora.

Preocupa-me, entretanto, a polêmica entre os irmãos Boff. Tanto Leonardo quanto Clodovis são teólogos de sólida formação. Não considero justa a acusação feita por Clodovis de que a Teologia da Libertação teria priorizado o pobre no lugar do Cristo. O próprio Evangelho nos mostra Cristo identificado com os pobres, como ocorre na metáfora da salvação em Mateus 25, 31-46.

Francisco de Assis, com quem sempre me entretenho em bons papos, lembra que sem referência ao pobre, sacramento vivo de Deus, Cristo corre o risco de virar um mero conceito devocional legitimador de um clericalismo que nada tem de evangélico ou profético.

Tenho dito a são Pedro que sonho com uma Igreja em que o celibato seja facultativo para os sacerdotes e as mulheres possam celebrar missa. Uma Igreja livre das amarras do capitalismo, e na qual os oprimidos se sintam em casa, alentados na busca de justiça e paz.

Quanto ao mundo, lamento que a fome, por cuja erradicação tanto lutei, ainda perdure, ameaçando a vida de 950 milhões de pessoas e causando a morte de cerca de 23 mil pessoas por dia, a maioria crianças.

Por que tantos gastos em formas de ceifar vidas, como armamentos, e investimentos que degradam o meio ambiente, como pesticidas, desmatamentos irresponsáveis e cultivo de transgênicos? Por que tão poucos recursos para tornar o alimento – dom de Deus – acessível à mesa de todos os humanos?

Ao comemorarem meu centenário, lembrem-se dos princípios e objetivos que nortearam a minha vida. Malgrado calúnias e perseguições, vivi 91 anos felizes, pois jamais esqueci do que disse meu pai quando comuniquei a ele minha opção pela vida sacerdotal: "Filho, egoísmo e sacerdócio não podem andar juntos".

Frei Betto é escritor, autor, em parceria com Leonardo Boff, de Mística e Espiritualidade, Garamond, entre outros livros.




Quando os problemas se tornam absurdos,
os desafios se tornam apaixonantes”.
















NOBEL: O DETONADOR



“A observação e a busca de semelhanças e diferenças
são a base de todo conhecimento humano...”.



Alfred Nobel




Filho de suecos, Alfred Bernhard Nobel nasceu em Estocolmo, na Suécia, no dia 21 de outubro de 1833. Foi engenheiro químico, cientista, inventor, empresário, industrial, escritor e humanista. O pai, Immanuel Nobel, autodidata, engenheiro civil, químico e inventor, ganhou muito dinheiro construindo pontes e edifícios na capital sueca, mas faliu em 1833. Sem opção, a mãe, Karolina Andriette Ahlsell Nobel, passou a trabalhar em um supermercado para manter a família.


Immanuel Nobel e Andriette Nobel
(1801-1872) (1827-1889)




Em 1842, viajam para a Finlândia e, em seguida, para St. Petersburg – hoje, Leningrado –, na Rússia, onde, inicialmente, Immanuel consegue trabalho como mecânico e, depois, abre a sua própria empresa, tornando-se um dos principais fornecedores de equipamentos militares para o Exército russo. Anos depois, percebendo o pendor de Alfred pela engenharia química, Immanuel decide enviá-lo a outros países a fim de obter experiências na área.


Assim, aos dezessete anos de idade, Alfred deixa a família e a Rússia e parte rumo ao desconhecido. Em Paris, onde se especializa em química, conhece o químico italiano Ascanio Sobrero (1812-1888), que, em 1846, havia inventado a nitroglicerina líquida, de imediato despertando o interesse do jovem Alfred por seu potencial revolucionário para a engenharia civil. Nos Estados Unidos, além de trabalhar, estuda com o químico e inventor sueco John Ericsson (1803-1889).

O químico italiano Ascanio Sobrero,
a fórmula da nitroglicerina e o invento líquido.



De retorno a St. Petersburg, em 1852, ele decide realizar alguns experimentos com nitroglicerina, a fim de garantir o uso seguro da invenção de Sobrero para poder comercializá-la. Não obtém sucesso. Um ano depois, quando eclode a Guerra da Criméia (1853-1856), o seu pai inventa minas navais e torpedos para a milícia russa. No entanto, findo o conflito, a renda de Immanuel despenca consideravelmente e, não demora muito, ele, mais uma vez, declara falência.





No entanto, inventor que é, passa a criar ferramentas elétricas para a indústria mecânica e um sistema de aquecimento central para edifícios com radiadores e água quente. Mesmo assim, os anos que se seguem não são nada fáceis e, em 1863, Immanuel decide voltar com a família para a Suécia. Instalados em Helenborg, Alfred, o pai e Emil, o irmão caçula, abrem um laboratório de pesquisas e dão continuidade as experiências com nitroglicerina.

Em 1863, Nobel requer a patente para um detonador:
ele explodiu a nitroglicerina.



No ano seguinte, uma dessas experiências, explode o laboratório e faz algumas vítimas fatais. Entre elas, Emil. Semanas depois, Immanuel sofre um derrame cerebral e fica paralisado até a sua morte, oito anos depois. Obstinado, Alfred supera as fatalidades familiares e retoma os seus experimentos com a nitroglicerina. No entanto, ainda em 1863, ele requer a sua primeira patente importante para um dos seus inventos: um dispositivo de ignição, também conhecido como Processo Nobel.



© Photo: The Nobel Foundation




E o detonador entrou para a História como a maior descoberta feita tanto em princípio como em prática de explosivos, motivando Alfred, através do uso da nitroglicerina, inventar a dinamite, cuja patente requer e obtém em 1866. Acreditando, portanto, que, com a sua nova cria, iria contribuir com a construção de estradas, ferrovias, pontes e demais obras, sinônimos de progresso, ele abre a primeira das suas várias fábricas de dinamite.


Desse modo, com a fabricação e a venda do explosivo, passa, então, a ganhar muito dinheiro. Fica multimilionário. Ascanio Sobrero, por sua vez, sente-se injustiçado, alegando que a súbita fortuna e popularidade adquiridas por Alfred só foram possíveis graças à nitroglicerina, invenção de sua autoria, a base da dinamite, que, em grego, dynamis, significa força, embora, para o povo, ela tenha ficado conhecida como a pólvora de segurança de Nobel.


Nesse ínterim, Robert e Ludwig, irmãos de Alfred, que permaneceram na Rússia após o retorno da família à Suécia, já haviam reaberto a antiga empresa do pai e, bem sucedidos, os dois irmãos logo se tornaram uma das maiores fornecedoras de armamentos bélicos para a milícia russa. Certa vez, contudo, Ludwig viaja para as montanhas do Cáucaso, em busca de nogueiras, cuja madeira era a adequada para a fabricação das coronhas dos fuzis que fabricava em sua empresa.


Passando pela região de Baku, capital do Azerbaijão, nas proximidades do Mar Cáspio, Ludwig descobre petróleo, já produzido em escala comercial desde os tempos de Marco Polo (1254-1324), lá pelos idos de 1271. Apossando-se das melhores terras do lugar – à época, praticamente desabitado –, contrata petroleiros de várias partes do mundo, cava poços e monta uma refinaria, passando a extrair uma mina de riqueza que, fartamente, jorrava do solo.


Isso tudo quando o mundo utilizava a lâmpada de querosene. Não deu outra: Ludwig logo enriqueceu. Alfred, por sua vez, que financiou a aventura petrolífera do irmão, aumentou, com a empreitada, a fortuna que já possuía e se tornou um dos primeiros magnatas de petróleo do mundo, acumulando uma das maiores fortunas da Suécia. Era, contudo, estigmatizado como cientista louco, embora detivesse o monopólio da produção de dinamite na Europa e nos Estados Unidos.
“Eu, que não tenho um coração, metaforicamente falando.
Eu tenho um órgão, eu senti...”.


Alfred Nobel



Além disso, Alfred tinha, ainda, mais de trezentas e cinqüenta patentes registradas em seu nome. E não somente invenções envolvendo elementos explosivos, mas, também, borracha sintética, couro e seda artificiais, entre outras. Ganhou dinheiro demais! Adquiriu poder. No entanto, a sua vida sentimental nunca foi promissora. Em seu coração, a única coisa que explodia é a solidão. Em 1876, aos quarenta e três anos, pôs em um jornal austríaco um anúncio...




“Um senhor de certa idade, rico e muito instruído,
residente em Paris, procura mulher experiente e
de certa classe, que conheça línguas estrangeiras,
para lhe servir de secretária e dama de companhia”.


Bertha: a pacifista que iluminou o senhor das explosões.





Respondeu ao anúncio a condessa Bertha Kinski von Chinic und Tettau (1843-1914), descendente de uma família arruinada da aristocracia austríaca. Escritora em ascensão, Bertha tinha trinta e três anos e era fluente em vários idiomas, assim como Alfred, que por ela se apaixona. No entanto, amante de um barão austríaco, o engenheiro e romancista Arthur von Suttner (?-1902), Bertha não demora muito trabalhando para Alfred e fugiu com Arthur.




Os dois se casam, então, no exílio e, durante anos, mantêm uma vasta e profícua correspondência com Alfred, que, nesse ínterim, passa a sofrer de constantes e lancinantes dores de cabeça, que atribuía ser conseqüência das suas inúmeras experiências com nitroglicerina. Além disso, a partir dos cinqüenta anos de idade, ele começa a ter freqüentes crises de angina (viria a ser tratado com nitroglicerina, até hoje usada como vasodilatador coronário).




Anos depois, em 1891, é expulso da França, onde havia vivido dezessete anos, acusado de espionagem industrial a serviço da Itália. Em seguida, nos tribunais ingleses, Alfred perde um processo referente a uma das suas mais valiosas patentes, a da balistile, um tipo de pólvora sem fumaça, derivada da nitroglicerina, tal qual a dinamite, que ele havia inventado e sido patenteada em 1887, embora logo usada por diversos países em ações militares.

“Onde estão os meus numerosos amigos?”.

Alfred Nobel


Cada vez mais deprimido, ele se culpa por muitas das suas invenções estarem sendo utilizadas para fins bélicos. Desiludido com a humanidade e sem filhos, ele se torna pessimista e sombrio. Na gíria de hoje, sente-se detonado! Tanto que, em seus últimos anos de vida, não se sabe se por misantropia ou excentricidade, Nobel só ia as suas fábricas aos domingos. Assim, evitava encontrar algum operário, bem como certo constrangimento.


Quando da morte do irmão Robert, um jornal cometeu um equívoco e publicou um longo obituário como se o morto fosse ele. Horrorizado, porque o obituário o descrevia como um homem que tornara possível matar mais pessoas, mais rapidamente, do que qualquer outra pessoa, Nobel percebeu que não queria ser lembrado daquela maneira. Resolveu fazer a diferença, mesmo porque a má utilização de muitos dos seus inventos lhe causava sérios desgostos, e alterou o seu testamento.
Testamento de Alfred Nobel.


Decidido, declarou a sua vontade em criar uma fundação, gestora de toda a sua fortuna, e que teria diversas atribuições altruístas, inclusive a de, anualmente, conceder prêmios aos que servem ao bem da humanidade, fossem personalidades ou instituições. Para tanto, Nobel elegeu quatro campos de atividade a serem contemplados: física, química, fisiologia ou medicina e literatura, e os laureados, escolhidos por especialistas suecos.


Pacifista e ativista política em defesa dos direitos humanos, exercendo, ainda, uma forte influência sobre Alfred, mesmo após vinte anos de amizade, Bertha sugere que ele também garanta uma premiação àqueles que, de alguma forma, se destacam desenvolvendo ações em prol da paz mundial. Sem hesitar, o amigo alterou o seu testamento pela terceira e última vez e declara ser sua vontade que a fundação crie, também, um prêmio a pacifistas.


O futuro Prêmio Nobel da Paz, por sua vez, que viria a ser o mais prestigiado de todos os prêmios da Fundação e do mundo, teriam os seus laureados indicados por um comitê escolhido pelo parlamento norueguês. E isso não somente para agradar a si mesmo, mas, sobretudo, à Bertha. De qualquer modo, um agrado providencial, já que, no dia 10 de dezembro de 1896, o cérebro de Alfred Nobel não resistiu e foi vitimado por uma hemorragia cerebral, que – não foi por falta de aviso – silenciou o homem das explosões.

Casa de Alfred Nobel, em San Remo, na Itália.


Como receava, Alfred morreu sozinho – possibilidade que, em vida, sempre lhe causou pânico –, cercado, apenas, dos seus empregados, na cidade italiana de San Remo. Em vida, tentou evitar todo e qualquer tipo de publicidade, sobretudo da sua imagem. Nunca quis, por exemplo, que pintassem o seu retrato – prática comum as personalidades do seu tempo – e o único já feito, que se tem conhecimento, embora eu não tenha descoberto o autor, foi feito após a sua morte.


Porém, mesmo sendo avesso a condecorações e prêmios e sem mostrar o menor respeito por elas, foi, por diversas vezes, homenageado. Costumava dizer, inclusive, que recebeu a Ordem da Estrela do Norte da Suécia, a mais importante comenda da realeza sueca, por ter um bom cozinheiro, capaz de agradar estômagos influentes, e a Imperial Ordem da Rosa, a mais alta distinção honorífica do império brasileiro, porque fora apresentado casualmente a dom Pedro II (1825-1891).
Nobel pretendeu pleitear uma fábrica de dinamite
no Brasil por intermédio de dom Pedro II.




Decerto um paradoxo querer conceder prêmios a terceiros, já que ele mesmo não gostava de recebê-los. No entanto, Alfred o fez. E, como ele assim o desejou, a Fundação Nobel foi criada em 1900. Porém, os primeiros prêmios só passaram a ser concedidos em 1901, sendo os nomes dos laureados anunciados em outubro de cada ano pelos diferentes comitês e instituições que realizam a seleção, cujas cerimônias de entrega dos prêmios acontecem todo dia 10 de dezembro, aniversário da morte de Alfred.




Os prêmios, portanto são: uma medalha de ouro, um diploma, com a citação da condecoração, um certificado comprovativo do Prêmio e milhões de coroas suecas, oriundos dos fundos mantidos pela Fundação Nobel, já com mais de cem anos de existência. Anualmente, portanto, o Nobel de Física, Química, Fisiologia ou Medicina e Literatura recebem os seus prêmios em Estocolmo, na Suécia, enquanto a cerimônia da entrega do Nobel da Paz acontece em Oslo, capital da Noruega.

Enfim! O fato é que a Fundação Nobel, bem como os prêmios por ela instituídos, já contabilizam mais de cem anos, satisfazendo, portanto, um dos últimos desejos de um dos raros visionários que este mundo já conheceu. Alfred Nobel, por exemplo, foi um dos primeiros a admitir a teoria do equilíbrio do terror. Certa vez, escreveu a Bertha:



“No dia em que exércitos inimigos possam aniquilar-se em um segundo, todas as nações civilizadas — ao menos é de se esperar — evitarão a guerra e desmobilizarão seus soldados. Por isso, minhas fábricas podem pôr termo à guerra mais rapidamente que seus congressos pela paz”.


Infelizmente, não é isso o que temos visto ao longo dos séculos, com constantes guerras assolando o planeta. Ao contrário! No entanto, se servir de consolo, durante a Primeira Guerra Mundial, em sinal de protesto, de 1914 a 1916, não houve atribuições do Nobel da Paz, mas apenas em 1917, ainda durante a guerra, cabendo ao Comitê Internacional da Cruz Vermelha ser laureado, ficando 1918 também sem indicações ao prêmio.


O mesmo acontecendo durante a Segunda Guerra Mundial. Ou seja, de 1939 a 1943, não foi atribuído o Nobel da Paz. Porém, em 1944, coube mais uma vez ao Comitê Internacional da Cruz Vermelha ser laureado. Algumas décadas antes, contudo, em 1905, a primeira mulher a receber o Nobel da Paz foi, merecidamente, a já baronesa Bertha von Suttner, pacifista, escritora e amiga pessoal de Alfred, além de ter sido a responsável pela inclusão da premiação em seu testamento.

Bertha Von Suttner, autora do livro romance
anti-guerra
Lay Down Your Arms:
a autobiografia de Martha Von Tilling
, Londres, 1892.



Os seus méritos, portanto, não foram poucos. Fundadora de uma sociedade para a paz na Áustria e a frente de campanhas a favor do desarmamento e em defesa dos direitos do homem, Bertha era presidenta honorária do Gabinete Internacional Permanente para a Paz, fundado em 1891, na Suíça, pelo pacifista e jornalista suíço Élie Ducommun (1933 - 1906), que já havia sido contemplado com o Nobel da Paz em 1902, enquanto que a instituição só o foi em 1910.






“Nobel: Um pensador, um poeta, um homem um tanto gentilmente amargo,
infeliz e despreocupado dada a soberba dos vôos da mente...”.
Bertha von Suttner



O sucesso da descoberta do detonador e da dinamite foi, de fato, estrondoso, fazendo do engenheiro químico sueco um industrial bem sucedido. Porém, a solidão e a exposição constante e direta com experimentos químicos, sobretudo com a nitroglicerina, findaram por fragilizar o seu corpo e a sua mente, de onde, também, saíram poemas e dramas. O escritor francês Victor Hugo (1802 - 1885), por sua vez, diante das constantes viagens de Nobel por suas diversas unidades industriais e laboratoriais sediadas em diversos pontos do globo, considerou-o “o vagabundo mais rico da Europa”. Alfred, para quem a rima não tinha outra serventia que a de ocultar a banalidade do pensamento, devia, contudo, se sentir assim...


Nathalie Bernardo da Câmara

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