quarta-feira, 14 de setembro de 2011

O MINISTÉRIO DAS ALMAS PENADAS ADVERTE: NÃO RECOMENDÁVEL PARA QUEM TEM DOGMAS...*


OLHO POR OLHO?
(Uma nova visão da cegueira)

Πολύφημος (Polýphemos)
Domínio público


"A estupidez insiste sempre...".

Albert Camus (1913 - 1955)
Escritor francês nascido na Algéria



De repente, para passar o tempo, afastando o tédio e todo tipo de olho grande, como é chamado o mau olhado, deu-me na telha falar de outro olho grande, o ciclope, gigante de um olho só, localizado no centro da fronte, fruto mitológico da cultura helenística. Do grego Κύκλωψ (kýklops), que significa olho grande ou olho redondo, os ciclopes constituem-se em um mito que, segundo as lendas, por possuírem uma força física descomunal, uma estatura elevada e a particularidade ocular, levou muitos, na Grécia Antiga, onde supostamente teriam vivido, a chamá-los de monstros, personificando o grotesco, o difuso, o diferente.

Hoje, coitados, os ciclopes seriam excluídos da nossa sociedade dita moderna, marginalizados, discriminados e vítimas de chacotas as mais diversas. Segundo os causos contados, eles teriam sido muitos, caracterizados, contudo, em três espécies quase distintas: os urânios, filhos de Uranus, divindade que simbolizava o céu, e de Gaia, divindade que personificava a terra, mãe e provedora universal; os sicilianos, filhos de Poseidon, deus do mar, detentor de um poderoso tridente, e da ninfa Teosa, e, por sua vez, os construtores, originários do território da Lícia, antiga região do sudoeste da Ásia Menor, hoje, sudoeste da Turquia.

A primeira das três espécies, portanto, era formada por três irmãos: Brontes, Estéropes e Arges, que, de tão danados, foram encarcerados pelo próprio pai. Libertos – a história é muito longa, deixo-a para outro contar –, presentearam Zeus com os seus dons. Cada um, então, deu o melhor de si ao todo-poderoso, cabendo ao impaciente Brontes a oferta do trovão, enquanto o destemido Estéropes doou ao mestre de todos os deuses o relâmpago. Por fim, o vingativo Arges outorgou ao supremo o poder do raio – tudo indica que o trio era mesmo da pesada, como se diz na gíria. Ou seja, agressivos. Bom! Já a segunda espécie de ciclopes...

Virulentos, os sicilianos eram, igualmente, violentos. Selvagens, praticavam a antropofagia, embora também se alimentassem de outros animais – costumavam criar ovelhas – e de vegetais. Curiosamente, o mais famoso dos ciclopes que entraram para a História da mitologia helênica foi Polifemo, o antagonista do herói Ulisses, personagem da Odisséia, criada pelo poeta épico grego Homero (v. 850 a.C). Feito prisioneiro do intempestivo Polifemo em sua caverna, Ulisses achou-se sem saída diante da situação em que se encontrava. No entanto, apesar de aparentemente insondável e impenetrável, Polifemo tinha lá, também, as suas fraquezas.

Ao aceitar de Ulisses um tornado de vinho, revelou que, de certa forma, podia ser um ingênuo incurável. Ébrio, sem defesa, foi atacado com uma lança por Ulisses, que feriu o seu único olho e fugiu. A terceira espécie de ciclopes, por sua vez, os construtores, embora possuísse a mesma aparência um tanto quanto disforme dos seus semelhantes, era destituída de instintos violentos. Poderíamos até arriscar a dizer que os construtores eram ciclopes pacíficos, dotados, inclusive, de grande capacidade criativa e, como o seu próprio nome já diz, construtiva. Solidários – não submissos –, eles costumavam prestar os seus serviços a lendários heróis.

Enfim! Os mitos gregos foram muitos – haja imaginação... E, como todo mito, o dos ciclopes é arbitrário. Eu diria até que, de certo modo, a mitologia grega é um celeiro de esquizóides. Bom! Dando vazão, ainda, ao meu ócio criativo, eu diria, também, que, para mim, só existiram e continuam existindo apenas dois ciclopes: Deus e o Diabo, resultante da ruptura de um ser vivo outrora uno – não confundir com humo –, mas não necessariamente siamês, chamado, digamos assim, de a Coisa, habitante do planeta Bouffon. E tal ruptura deu-se, fundamentalmente, em função de a Coisa ser regida por dois princípios antagônicos: o bem e o mal.

Gerador de um conflito interior aparentemente interminável, o maniqueísmo – doutrina fundada pelo persa Mani ou Manes (séc. III) – aliado ao processo natural de involução das espécies, a sua incapacidade em discernir, à escassez de neurônios e à cobiça, desencadeou, portanto, uma separação de corpos da Coisa, rompendo o elo que os uniam e, como já era esperado, provocando um sangrento cisma. Afinal, com a separação do corpo em dois, feridas foram expostas e, com elas, as vulnerabilidades de ambos. O tempo, então, passou e, aos poucos, os dois corpos foram regenerando-se, inclusive o olho.

Ocorre que, como nenhum ser vivo é perfeito, a seqüela provocada pelo rompimento físico de Deus e do Diabo foi a da impossibilidade da formação de um segundo olho. Surgiam, então, os ciclopes. E com as mesmas características físicas dos urânios, dos sicilianos e dos construtores. Ou seja, extravagantemente burlescas. Só que, frustrados, inconformados e revoltados devido à limitada visão, Deus e o Diabo resolveram se unir, mas apenas nas idéias. Em comum acordo – coisa rara entre eles –, decidiram elaborar um plano para vingar o fato de terem de passar o resto das suas vidas unóculos, ou seja, cada um com apenas um olho.

Assim, elaborado o plano de vingança, logo o puseram em prática, jogando uma praga tão grande nos demais seres vivos que, em um piscar de olhos, o de um e o do outro, claro, todos, ao seu redor, ficaram cegos. Passando a reinarem absolutos, Deus e o Diabo deram prosseguimento à execução do plano. De um poder sem limites, tornaram-se ubíquos, onipresentes, não importava se fosse dia ou noite, se fizesse sol ou chuva. E com granizo, então! Era tropeço para lá, tropeço para cá... Uma balbúrdia só! Eles? Verdadeiros ciclones, devastando todo e qualquer vestígio de harmonia que, porventura, ainda pudesse haver em Bouffon.

Armando, ainda, todo tipo de presepada, os ciclopes se tornaram reis de uma terra de cegos. Debochados, eles riam da desgraça alheia sem maiores constrangimentos. Pintavam e bordavam. O sete, claro! O bordão de Deus e do Diabo? "Tô nem ai! Tô nem aí!"... E haja praga! O mais curioso é que eles nunca se davam por satisfeitos e, sempre que faziam alguma maldade – aliás, o seu maior divertimento –, trocavam sádicas piscadelas. Só que, insaciáveis, os ciclopes passaram a querer ter acesso aos pensamentos e as emoções dos bouffonenses para suprimir todo e qualquer vestígio de identidade dos cegos – se é que eles tinham, ainda, alguma.

Com esse propósito, Deus e o Diabo tiveram a mirabolante idéia de criar uma poderosa arma, que, se, de fato, eficaz, tornaria os seus poderes ainda mais ilimitados. Só que como eles possuíam uma mente para lá de obtusa e não cultivavam o hábito de pensar, estimulando o discernimento, o simples gesto de piscar os olhos que eles faziam com desenvoltura sempre que queriam algo foi, desta vez, algo extremamente penoso. De qualquer modo, superando as suas próprias limitações, eis que, certo dia, a arma foi criada. Porém, a escolha do nome da invenção, já vista como infalível, passou a se constituir em um outro problema. Haja preguiça mental!

De qualquer modo, após uma piscadela daqui, outra dali, eis que o nome da poderosa arma chegou, desembocou à mente tacanha dos ciclopes, passando a se chamar... Internet. Os cegos de Bouffon, aliás, teriam livre acesso à arma através do domínio do braile, que, inclusive, foi adquirido por mais um piscar de olhos dos soberanos, que, benevolentemente, distribuíram computadores (fixos e portáteis) e celulares – tudo digital, diga-se de passagem – à toda população bouffonense. Assim, quando um cego acessava a internet, Deus e o Diabo tinham acesso a todas as suas emoções e pensamentos, registrando-os em secretos arquivos.

De fato, nada escapava aos dois tiranos, que, miraculosamente, tinham elaborado um plano mais que perfeito. E, quando menos esperaram, os bouffonenses adentraram na era da globalização, em um mundo literalmente sem fronteiras. A vida, que, até então, ou seja, até o surgimento dos ciclopes, já era um tanto quanto desvalorizada, tornou-se, vertiginosamente, banalizada. De certa maneira, voltava-se, paradoxalmente, ao tempo das cavernas. Os Bouffonenses, que até a ruptura da Coisa, que deu à luz a Deus e ao Diabo, também já enxergavam mal, passaram a se expressar guturalmente, em uma regressão contínua.

Pior! Quando precisavam de algo, mesmo que fosse comida, sem falar nos colírios, soro fisiológico etc e tal, passaram a solicitar o algo pelos serviços de entrega domiciliar disponíveis na internet. Não saiam mais de casa, ou seja, das cavernas. Raras eram as vezes em que isso acontecia. E, se saiam, levavam consigo não somente o celular, fosse para um eventual acesso ao mundo sem fronteiras, fosse para ligar para casa, avisando que hora voltariam etc, mas, também, o tacape. Sim, o tacape! Assim, caso algum animal ainda mais primitivo aparecesse, eles poderiam praticar caça, garantindo, de quebra, a janta.

Deus e o Diabo, portanto, só agravaram, consideravelmente, os problemas dos bouffonenses: a erradicação da miséria e a do analfabetismo, por exemplo; o desperdício de alimentos; o mau uso da água, da luz, do solo... Sem falar no consumismo desenfreado, alienado; na devastação das matas e florestas; das guerras insanas; do buraco na camada de ozônio, cada vez maior e ameaçador; do aquecimento global, que, aliás, se eles não tomassem os devidos cuidados, iriam terminar por transformar o planeta em grandes fogueiras. Quiçá, inquisitoriais, já que tudo ao redor seria, inevitavelmente, consumido.

O degelo dos icebergs, por sua vez, seria estimulado, aumentando a quantidade de água nos oceanos e o nível do mar, quando ondas gigantes poderiam, inclusive, engolir tudo e todos. Resultado: com Deus e o Diabo andando de mãos dadas, nada era impossível... Os cegos, por sua vez, além de nada enxergarem, passaram a correr o sério risco de não sobreviverem, sem deixar sequer descendentes, ou seja, uma possível futura geração, que, em seu tempo, se reportaria aos antepassados não como o homo sapiens sapiens, mas como o homo.com.br., tragado pela sua própria mediocridade e arrogância, provocadas por Deus e pelo Diabo.

Os dois, sim, que de tão danados, já haviam até ventilado a possibilidade de impedir a cura da AIDS... Porém, saturados de uma aparentemente interminável opressão – uma sangria desatada –, os cegos deram início a um movimento a fim de destituir os poderes dos cruéis ciclopes, tirando-lhes a sua majestade. Para isso, acharam melhor consultar um oráculo da Grécia Antiga: um formoso gatinho – não cego –, que os recebia em sua caverna sempre antes de alguma decisão a ser tomada, até o dia do julgamento final. Mas, eis que um problema apresenta-se: quem haveria de bater o martelo? Ou seja, quem iria ser o juíz do caso?

Teve início, então, o maior tititi e as mais diversas sugestões foram anotadas. E acho até que o caro leitor nem vai acreditar, mas a lista incluiu milhares de nomes, os mais diversos, desde o filósofo grego Aristóteles (384 - 322 a. C), passando por Pilatos (séc. I d. C), que, à época, já apresentava sintomas de Transtorno Obsessivo Compulsivo - TOC, por seus lavares de mãos; o escritor português José Saramago [1922 – 2010] e o seu romance Ensaio sobre a cegueira; Mônica, personagem do desenhista brasileiro Maurício de Sousa e a pop star americana Madonna... Não, não iria dar certo. Primeiro porque, muitos deles, se chamados, iriam, de cara, condenar o Diabo, absolvendo Deus.

Outros, se chamados, condenariam Deus sem nem pestanejar e absolveriam o Diabo. O juiz teria de ser imparcial. Assim sendo, após um vai e vem ao oráculo do formoso gatinho e um sem fim de consultas, foi eleita juíza Jeanne I (1326 - 1382), rainha de Nápoles – em português, Joana –, que, apesar de ser considerada protetora de poetas e intelectuais, foi acusada de conspirar contra a vida do marido, assassinado por um complô. Exilada em Avignon, na França, Joana instalou-se em um palácio que já havia sido residência de vários papas, passando a mandar e a desmandar na cidade, regulamentando, inclusive, os seus bordéis.

Uma das normas baixadas por Joana? "O lugar terá uma porta por onde todos possam entrar", sendo, contudo, mal interpretada, coitada... Sim, porque a sua intenção era ser a mais democrática possível, a fim de ser querida por todos da nova cidade que ela havia dominado. Curiosamente, a ousadia foi tanta que a norma viajou o mundo de várias formas, embora com o mesmo sentido, e, no caso do Brasil, é mais conhecida como a expressão: Casa da mãe Joana, que significa nada mais que desordem, desorganização e desmando. Ninguém melhor, então, como Jeanne I para ser indicada juíza e entender o caos instalado em Bouffon.

Ainda mais se considerarmos a sutileza do caso e a suscetibilidade de Deus e do Diabo, tornando-a responsável pelo julgamento final dos acusados. É chegado, então, o grande dia! No banco dos réus, Deus e o Diabo, que haviam dispensado o advogado de ambos e sem disfarçar as suas respectivas impaciências, aguardam o início do julgamento. Não demora muito e, como se estivesse em sua própria casa, se sentindo toda, toda, a juíza adentra o grande salão do Tribunal de Justiça de Bouffon, senta-se em sua poltrona de alto espaldar e dá início aos trabalhos, começando por informar o motivo pelo qual os presentes ali se encontram.

Ou seja, ela expõe o motivo do processo movido pela população de Bouffon contra Deus e o Diabo: os dois celerados e acelerados ciclopes que, até então, eram os soberanos dos bouffonenses eram acusados de cegar o povo, de condená-lo à internet e de impor toda sorte de desgraça ao planeta Bouffon. Um julgamento breve, mas nada leve, tendo em vista os ânimos alterados de Deus e do Diabo, contrariados em toda a sua magnitude, apesar da opinião pública ser favorável à condenação dos dois e as provas contra eles serem irrefutáveis. Assim, o veredicto não tarda. Eretos, diante da juíza, os acusados ouvem a sentença: "Culpados!".

A pena, contudo, é branda. Deus e o Diabo teriam de devolver a visão aos habitantes de Bouffon, de reparar as demais faltas que cometeram e deveriam ser encaminhados à Terra do Expurgo, de onde nunca mais sairiam e onde iriam vagar pelo resto das suas vidas. Detalhe: cegos do único olho cada. Assim, aos olhos de todos, ainda no Tribunal de Justiça, Deus e o Diabo cumprem com as duas das primeiras penas imputadas pela juíza, que, em um piscar de olhos, claro, consiste em restituir a visão da população e reparar as maldades que cometeram. Em seguida, um guarda empunha uma lança e cega os respectivos olhos dos ciclopes.

Todos urram e aplaudem, em sinal de aprovação, e, em um piscar de olhos, da juíza, no caso, Deus e o Diabo são deportados para a Terra dos Expurgos. A sessão é, portanto, dada por encerrada e todos vão comemorar em um dos bordéis de Bouffon, já que a juíza não deixou por menos e os regulamentou ao seu bel prazer. Estava aberta a temporada de caça. Desta vez, contudo, a caça da liberdade, com Bouffon ganhando novas referências, uma nova legislação e uma nova soberana, Joana, que escolheu fazer do lugar o seu lar doce lar, ou melhor, a sua nova morada. E, fazendo jus a sua decisão, mudou o nome de Bouffon para Casa da mãe Joana...

* Publicado originalmente no dia 17 de maio de 2009


Nathalie Bernardo da Câmara
De uma caverna qualquer...



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