domingo, 25 de maio de 2014

TECENDO VERSOS


Roxo é a cor da paixão

FILOMENA escondia o leite, queria guardá-lo inteiro para o bezerrinho. Tia L. escondia sua poesia, quis guardá-la para a morte. Dessa remota tiazinha ficou apenas um desbotado retrato no álbum: vestido de tafetá preto de gola alta, agarrada no pescoço para deixar escapar só a fímbria da rendinha. Cintura de vespa, toda dura sob as barbatanas do espartilho. E a carinha em pânico. Leve, descontraída, a sombrinha branca com seus babados frouxos e um laçarote transparente no cabo.
Escrevia os poemas escondida, fechada no quarto, a letra tremida, a tinta roxa. Meu bisavô ficou meio desconfiado e fez o seu discurso: “Umas desfrutáveis, mana, umas pobres desfrutáveis essas moças que começam com caraminholas, metidas a literatas!” Ela entendeu e fechou a sete chaves a obra proibida. Antes de morrer (morreu de amor contrariado), pediu que enchessem com seus versos o travesseiro do caixão branco – era moda caixão com travesseiros. Foram tantos, os versos, mas tantos, que tiveram que encher também o acetinado colchão da mocinha duplamente inédita: era virgem.
Mas, quem ousava desafiar a família e a sociedade? Aqui, no Brasil, foram bem poucas as que chegaram a se manifestar. Lá fora o número de artistas até que foi razoável, nos moldes de uma George Sand, que assumiu ofício e sexo com total arrogância. Mas se passando para a outra banda: amiga dos homens, assinava seus escritos com nome de homem, vestiu-se como homem e fumava tranqüila seus charutinhos. Uma época. Dois estilos.

Lygia Fagundes TellesA Disciplina do amor (1980).


Em tempo: mantida a grafia original, além de ser uma homenagem ao Dia Nacional da Costureira (25/05), aquela que tece vestes e versos de amor.


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