sábado, 24 de maio de 2014

ERRÂNCIA CIGANA

 Cigana com bandolim – Jean-Baptiste Corot, 1874

“Todos os tipos de cataclismos
– principalmente os sociais –
jogam nas estradas exilados,
que se tornam errantes
e freqüentemente instáveis...”.

Nicole Martinez, Os Ciganos.


Dia Nacional do Cigano é marcado por lançamento de edital de R$ 850 mil

Portal EBC

Leandro Melito e Noelle Oliveira - 23.05.2014 | Atualizado em 24.05.2014


Natal – O Dia Nacional do Cigano é comemorado neste sábado (24). A data, que coincide com o encerramento da Teia da Diversidade em Natal (RN), foi instituída em 2006 por meio de decreto presidencial que incluiu o dia no calendário nacional em reconhecimento à contribuição da etnia na formação da história e da identidade cultural brasileira. No calendário cigano, o dia 24 de maio é dedicado a Santa Sara Kali, padroeira dos povos ciganos.

Neste ano, a data é marcada pelo lançamento de um edital do Ministério da Cultura específico para os povos ciganos no valor de R$ 850 mil. O edital tem o objetivo de reconhecer e estimular iniciativas que atuam na preservação e proteção das culturas ciganas no Brasil. As edições anteriores dos prêmios contaram com valores de R$ 200 mil em 2007 e R$ 300 mil em 2010.

A promoção de editais com inscrições para pessoas jurídicas e pessoas físicas, com certificado de veracidade emitido pelas associações ciganas é uma das demandas apresentadas pelo povo cigano ao Minc em 2013 por meio da Carta de Brasília, documento elaborado por 20 associações que se reuniram na I Semana Nacional do Povo Cigano, realizada na capital federal durante a Conferência Livre de Cultura em 2013.

A carta também propõe que representantes indicados pelas associações dospovos ciganos participem dos processos de construção dos prêmios ou outras ações, por meio de comissões que sejam envolvidas na elaboração dos projetos. 

Bárbara Angely Piemonte, representante da comunidade Cigana na CNPIR (Conselho Nacional de Promoção da Igualdade Racial), participou da Teia da Diversiade em Natal. "O ponto de cultura nosso é um ponto itinerante. A gente é a cultura e a gente caminha pelos estados e municípios levando a música e a dança do povo cigano", conta. Ela considera que o evento também é marcado pela reivindicação de direitos. "A minha luta começa a hora que eu acordo, que eu saio na rua", enfatiza. 

As principais demandas apresentadas pelos povos ciganos estão voltadas para a área de educação, saúde, registro civil, segurança, direitos humanos, transferência de renda e inclusão produtiva.

A jovem cigana assumiu sua cultura aos dezoito anos, quando colocou seu primeiro dente de ouro. Ela, que até então não se apresentava como cigana, revelou aos amigos mais próximos que era cigana. "Eu me assumi para algumas pessoas que já estavam convivendo comigo. Alguns já sabiam, mas não contavam porque entendiam o meu lado, tinham um pouco de receio por causa do preconceito". De acordo com Bárbara, o preconceito veio por meio de um professor que considerou que ela não deveria estudar por ser cigana. Ela assumiu a cultura e optou por abrir mão de algumas tradições como, por exemplo, o casamento.

Integrantre da etnia Calon, originária da Espanha e Portugal e com grande expressão em todo o território brasileiro, Bárbara trabalha no resgate da música cigana tradicional europeia. "Se você entrar em qualquer acampamento no Brasil, você vai ver que a gente cultiva o sertanejo, a música sertaneja de raiz. Mas o cigano da europa cultiva outro estilo, a gente está resgatando isso pra não morrer a cultura", diz. 

Dados sobre a população cigana
Além dos Calon, estão presentes no Brasil as etnias Sinti e Rom. Os Sinti chegaram ao Brasil vindos da Alemanha e França principalmente depois da 1ª e 2ª Guerra Mundial e entre os Rom brasileiros predominam os Kalderash, Machwala e e Rudari, originários da Romênia. O primeiro registro oficial da chegada dos ciganos no país data de 1574, quando um decreto do governo português deportou o cigano João Torres e sua esposa Angelina para o Brasil por cinco anos.

Dados da Pesquisa de Informações Básicas Municipais (MUNIC) do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE)  de  2011 estimam que mais de 500 mil de ciganos vivam em todo o país. Eles estão divididos em 291 acampamentos. Existem acampamentos ciganos em 21 estados. Bahia (53), Minas Gerais (58), Goiás (38) são os estados com maior número de grupos de ciganos. Ao todo, quarenta prefeituras declararam que desenvolvem políticas públicas para os ciganos, o que corresponde a 13,7% dos municípios que declararam ter acampamentos. 

Edição: Edgard Matsuki




População cigana no Brasil, diversidade historicamente ignorada


“A documentação sobre ciganos é escassa e dispersa. Sendo ágrafos, os ciganos
não deixaram registros escritos. Assim, raramente aparecendo nos documentos,
aproximamo-nos deles indiretamente, através de mediadores, chefes de polícia,
clérigos e viajantes, por exemplo. Nestes testemunhos, a informação sobre os
ciganos é dada por intermédio de um olhar hostil, constrangedor e estrangeiro...”.

Rodrigo Corrêa Teixeira, Correrias de ciganos pelo território mineiro (1808-1903).


Observatório da Diversidade Cultural

23 de maio de 2013

A população cigana, constantemente perseguida em várias partes do mundo, aos poucos passa a ser lembrada como cultura que deve ser protegida para a promoção da diversidade cultural. De origem incerta, seus costumes e línguas são variados, não deixaram registros escritos, raramente aparecem em documentos, mas pesquisadores acreditam que, expulsos de Portugal, chegaram ao Brasil logo nas primeiras décadas da colonização. Tal fato resulta em grande parte da não aceitação dos ciganos de costumes católicos, já que não eram cristãos.

Em contexto de proximidade da Igreja com a coroa portuguesa, esta afronta moral tornava-se também uma afronta política. Hoje existem no Brasil cerca de 800 mil ciganos, de oito clãs diferentes, dentre os quais, o grupo Rom que representa o maior e distribuído por mais países. Entretanto, predominam os calon, culturalmente diferentes de outros grupos, em decorrência do grande contato com a cultura ibérica.

Na entrevista a seguir, o professor do departamento de Relações Internacionais da PUC Minas, Rodrigo Teixeira, enfatiza o aumento da atenção com os povos de cultura cigana, condição insuficiente, no entanto, para derrubar estereótipos predominantes no imaginário da população brasileira, bem como garantir acesso a direitos básicos dos ciganos, como ir e vir.

ODC: Os ciganos historicamente foram perseguidos no Brasil. Esta situação está mudando nos últimos anos?
Teixeira: Pela primeira vez nos últimos cinco séculos, entre a América Portuguesa e o Brasil, os ciganos deixaram de sofrer com políticas anti-ciganas ou com o desprezo do Estado para ser contemplados com políticas em prol dos ciganos, resultado da luta de muitos associações ciganos no país e de antropólogos e outros intelectuais engajados na questão. Mas, embora o acesso a educação e saúde tenha aumentando para os ciganos, a maior parte deles sofre com a falta de água e saneamento básico, sem falar da pressão imobiliária que reduz enormemente as áreas para acampamento.

ODC: Quais são os principais desafios dos povos de cultura cigana em relação à estigmatização e descriminação que sofrem?
Teixeira: São mais de mil anos de história, na qual os ciganos são perseguidos desde que chegaram ao Oriente Médio, vindos da Índia. Os estereótipos de que são ladrões, vagabundos e tranbiqueiros são muito fortes no Brasil e nos demais países onde se encontram. Os ciganos são vistos constantemente por meio de olhar de desprezo e até de medo das demais pessoas. Os direitos ciganos, em especial, devem contemplar o direito de ir e vir de acordo com o desejo deles. Cada vez mais o fluxo entre ciganos nos países é cerceado. Nas cidades brasileiras predomina a lógica de que “o melhor lugar para os ciganos é na próxima cidade ou mais longe ainda, e não na minha cidade”.

ODC: O caráter nômade destes povos representa uma dificuldade no sentido de acesso a direitos básicos que qualquer outro cidadão brasileiro teria?
Teixeira: Há estudos sobre a origem do nomadismo entre os ciganos e uma hipótese considerada é que a condição nomade está intimamente associada a perseguições ao longo da história. Ou seja, fugir constantemente e depois criar uma vida nômade foram estratégias de sobrevivencia. O nomadismo não é adequado à lógica estatal na maioria das vezes.
Cada vez mais o fluxo entre ciganos nos países é cerceado. Nas cidades brasileiras predomina a lógica de que “o melhor lugar para os ciganos é na próxima cidade ou mais longe ainda, e não na minha cidade”.

ODC: De que maneira os ciganos veem a população mineira? Eles incorporaram elementos culturais ao modo cigano de viver?
Teixeira: As culturas ciganas são abertas ao diálogo com outras culturas. Eles chegam em Minas no começo do século XVIII vindos da Bahia, exatamente no auge da exploração do ouro e, desde então, são dezenas de cidades mineiras com comerciantes de diferentes produtos, artífices de cobre e circenses ciganos. De imediato, não é possível identificar nenhuma contribuição cigana à mineiridade, já que de um lado estamos falando de centenas ou, mais recentemente, de milhares de ciganos e de outro milhões de não-ciganos. Se já é difícil falar de mineiridade, falar de identidade cigana é tão ou mais difícil.

ODC: O que a população não-cigana tem a aprender com a diversidade cultural trazida pelos ciganos?
Teixeira: Nem todo nômade é cigano, nem todo cigano é nômade. Há uma flexibilidade cultural dos ciganos que foi combinada, no transcurso do tempo, com a preservação de determinados valores. Os ciganos conseguiram ser outros sempre, com uma extraordinária capacidade de transformação, e serem eles próprios, naquilo que há de mais antigo em sua cultura, sua hindunidade (identidade hindu), suas formas de música, sua religiosidade para além da adoção oficial de uma ou outra religião.


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