Cá estava eu, no 1° de maio, amanhecendo o dia, quando tocou a
campainha – melhor surpresa não poderia haver em nublado feriado: a visita
inesperada do meu amigo padre Crispim, de quem eu não tinha notícias desde o
Carnaval – ocasião em que o conheci num retiro, embora não tão misericordioso assim, sob os olhares atentos do meu amigo padre Emílio e de uma freira, amiga de ambos, quando tomamos
um café matinal nada frugal e, em seguida, aproveitamos para trocar umas ideias
caminhando na praia. O fato é que, dias atrás, estando na propriedade rural da sua paróquia, padre
Emílio recebeu e-mail de Mané e Eliana,
um casal amigo em comum, informando que, numa recente viagem que fiz a uma ilha, fui
atingida por uma espécie de tsunami dos Trópicos, torcendo o pé direito –
aquele, o já “explodido” em março de 2012, que, aliás, à época, me rendeu um
longo ensaio sobre o ocorrido –, e que estava com o dito cujo engessado,
devendo ficar de “molho” por cerca de dez dias, quando deveria retornar ao
hospital, a fim de me submeter a novos raios-x e saber se já estaria liberada
para, se fosse o caso, encarar algum outro desafio do gênero.
Não deu outra! Simpático
a trabalhos manuais, especialmente o fuxico, Padre Emílio correu para contar a
resenha a Padre Crispim, colega de congregação, que, de passagem pela cidade,
veio visitar-me e, ao me encontrar, saiu com essa: — Você adora umas muletas,
hein!
Despojado, portanto, das
suas vestes habituais, ou seja, à paisana, padre Crispim, que, além de
piadista, costuma surpreender com a sua generosidade, chegou de maneira nada discreta:
trazia um balaio repleto de bananas na cabeça, já que tinha passado na feira da
rua ao lado e achou por bem trazer-me uma prenda, na vã ilusão, coitado – tão
bem intencionado –, de adocicar a minha convalescença. E a cena? Padre Crispim lá,
plantado, na soleira da porta, com aquele balaio na cabeça, e eu, no afã de ajudá-lo,
por pouco não levando um tombo, já que, em certo momento, apesar de literalmente
amparada pelo meu par de muletas, desequilibrei-me, visto que uma das pencas de
bananas despencou balaio abaixo...
Enfim!
Instalados na cozinha,
tudo já na mais santa paz, padre Crispim nos preparou uma vitamina de banana
com tudo o que se tem direito: leite – óbvio –, granola, aveia, mel... Enquanto
isso, num repente, eis que, após me transmitir as novas sobre
padre Emílio, ora numa temporada em solo italiano, a minha visita passou a enumerar as
propriedades nutricionais da banana, igual, provavelmente, reza uma missa, não
hesitando em reclamar da alta do seu preço ao longo da semana, superando o da
laranja; que muitas pessoas haviam perdido a noção; que, curiosamente, apesar
de muito consumida no Brasil, a banana não era nativa, embora não se soubesse
ao certo como havia sido introduzida; que, em tempos remotos, Adão e Eva já
conheciam a “fruta do povo”, embora o seu nome científico seja “musa
paradisíaca”; que, nos idos do séc. XVIII, frei João Pacheco, um religioso e
cronista português, achou por bem associar a banana à maternidade, registrando,
nos seus escritos de viagens, que, “quando o cacho quer brotar, a fruta dá
gemidos, como mulher que vai parir...”.
Bom!
Papo vai, papo vem – só
assunto trivial: conflitos na Ucrânia, Egito, Faixa de Gaza, Venezuela... –, padre Crispim nem hesitou em afirmar que “a ganância era o câncer da dita
humanidade”, não disfarçando o seu desdém pela política externa dos Estados
Unidos, cujos governos, um após o outro, no seu afã sem limites pelas riquezas
alheias, transpiram belicismo – não parou por aí. Lá pelas tantas, já
mais calmo, ele confessou ser admirador inconteste de Mujica. Empolgado, disse
que o presidente do Uruguai era isso, era aquilo – uma rasgação de seda que só
vendo! Não me segurando, perguntei o que padre Emílio achava disso tudo e ele, tomando
um gole de café, nem pestanejou: — Deixe quieto.
Questionei, ainda, como,
com as ideias avançadas que tinha, nada ortodoxas, lidava com a resistência na sua congregação
– sim, porque sempre tem uma resistência. Não se fazendo de rogado, ele admitiu
que, na sua paróquia, tirava de letra, ou melhor, tirava as enxadas do celeiro
– sim, a paróquia de padre Crispim tem um celeiro – e convocava a todos para
arar a terra, semear, argumentando que, sem agrotóxico e aditivos químicos, “a agricultura dignifica o homem”, bem
como algo, tipo, “ao invés do crime, a sociedade é que deveria se organizar”...
Pensei em mudar de assunto, mas, antes que eu o fizesse, uma reportagem sobre o
atraso nas obras dos estádios construídos para a Copa, divulgada num canal de
televisão, ligada na sala contígua, encarregou-se disso. De repente, numa
serenidade nunca dantes vista, padre Crispim disse: — Não vai ter Copa.
Então...
Na sequência, quando, no
mesmo telejornal, saiu a notícia fresquinha do reajuste de 10% do Bolsa
Família, tal qual os brioches chegando da padaria, padre Crispim demonstrou
certo incômodo, resmungou o vocábulo “oportunista”, deu de ombros e,
gentilmente, me perguntou se eu poderia desligar a televisão, pois não
suportava mais o cinismo de certos políticos, que eles haviam perdido o sentido
das realidades, essas coisas. Concordando com o meu amigo, atendi ao seu pedido,
visto que, afinal, não seria de bom tom desencadear refluxo em nenhum de nós,
ainda mais no café da manhã – refeição esse que, no caso, foi devidamente
degustada, justamente por ser padre Crispim bom de garfo, comendo um pouco de
tudo, sobretudo de mandioca, tubérculo que, inclusive, ele disse costumar
plantar nas terras da sua congregação – terras essas, aliás, produtivas e protegidas por arcos e flechas –, o que, provavelmente, lhe inspirou para,
inesperadamente, sair com outra das suas, sugerindo, igual criança levada, uma
travessura daquelas, ou seja, que poderíamos enviar uma remessa de
mandioca-brava para certo planalto das desilusões, “palco de muitas assombrações
e algumas ressuscitações”, disse, maldosamente, acrescentando: — Não sobraria
um!
Percebendo as intenções
subversivas de padre Crispim, eu disse que, mesmo sendo tentador, o gesto não seria
prudente, considerando as suas eventuais consequências, em nada palatáveis, e
que, de papudas, já bastavam as do seu galinheiro. Foi aí, então, que,
aproveitando a deixa, ele me pediu notícias de dona Palmira, uma conhecida
nossa, que nutre particular “toque” por galinha caipira, e se eu havia finalizado
o conto, por ele proposto tempos atrás, sobre as excentricidades da gentil
senhora. Tipo num confessionário, confidenciei-lhe o meu, digamos, bloqueio criativo e, sem titubear, desatei a
falar, igual se tece um rosário, explicando que os últimos anos não tinham sido
nada fáceis – o meu interlocutor só ouvindo, bebericando calmamente o seu café,
sacando, num dado momento, um charuto – interrompi o meu desabafo e remarquei o
hábito recém-adquirido do meu amigo, que, por sua vez, se limitou a responder:
— Cubano.
Diante do laconismo de
padre Crispim, prossegui, abrindo-lhe, ainda mais, o meu coração, tal qual o
sol, que, naquele momento, se abria mornamente, iluminando a manhã com os seus
raios brandos: disse que eu me sentia muito oprimida, consumida por um brejo
inteiro de sapos, alojados entre o esôfago e o estômago; que estava
desencantada com a humanidade, repudiando a sua hipocrisia e
superficialidade; que ansiava viver numa ilha deserta...
— É compressível, minha
querida, ele atalhou, perspicaz, já que, para você, dois já é assembleia; três,
confusão...
— E quatro é
esculhambação, né, padre Crispim?, complementei, sarcástica, visto que, noutro
momento, eu mesma havia me definido nesses termos para ele.
Desse modo, entendendo que
cada um deve saber de si, uma das suas muitas filosofias, para tentar desfrutar
de uma vida que não seja tão avassalada por dissabores, nem patética, no caso
de sermos por demais ingênuos, padre Crispim, sempre muito prático, foi direto,
alegando que, às vezes, estafa emocional confunde-se com estafa mental; que eu não
criasse mais expectativas em relação a ninguém nem a nada, não mais me
sujeitando a pessoas nem a situações que me constrangessem, mas que também não
fizesse o mesmo com outrem. E que só não me aconselhava a ter paciência porque
não costumava aconselhar ninguém a fazer o que nem ele mesmo fazia, finalizando:
— Uma coisa, minha filha, só existe quando a gente fala nela, evidenciando-a;
quando a gente não fala, a coisa deixa de existir.
Concordei, tacitamente,
e, algum tempo depois, esgotando todas as possibilidades de uma alternativa
viável para os desiludidos com a humanidade, os excluídos da sociedade e os
desvalidos da sorte, perguntei a padre Crispim se gostaria de ficar para o
almoço, antecipando-me em lhe informar o cardápio principal, ou seja, peixe. Matreiro,
ele sorriu: — Não sendo traíra...
Uma chamada
Dias depois, pensando
que padre Crispim já estava às voltas com os afazeres da sua paróquia, arando e
plantando sabe-se lá o quê, eis que ele me ligou no celular. Desgostoso, lamentou
que, mal havia chegado, foi comunicado por padre Emílio, que ainda estava na
Itália, da decisão do Vaticano em erradicar a pedofilia no seio da Igreja
católica, já que, para o meu amigo religioso, um compromisso dessa natureza não
era coisa que se firmava perante a ONU nem, muito menos, perante um sem fim de
fiéis espalhados no mundo inteiro, sobretudo quando a instituição tem plena consciência
de que não irá cumpri-lo, comportando-se, desse modo, irresponsavelmente, igual
à maioria dos políticos, principalmente os brasileiros, que, em época de
eleições, só não vendem a alma porque não têm uma e que, quando eleitos, apenas
se empenham na dilapidação do patrimônio nacional em prol de si e dos seus aliados,
em detrimento do povo, que permanece analfabeto e miserável, sem acesso aos
meios e bens de produção.
Inconformado, padre Crispim
disse, ainda, que, antes mesmo de prometer o que é incapaz de cumprir, a sua Igreja
deveria rever os seus valores e abolir, no caso, o celibato – caso contrário,
apenas corrobora o que, de há muito, já foi institucionalizado, que é a
hipocrisia, criando, na verdade, uma instituição dentro de outra instituição. E
o meu amigo estava tão aborrecido que, da sua ira, não poupou nem as Igrejas ditas
neopentecostais, com muitos dos seus pastores pregando a segregação racial, a
discriminação dos gays, congêneres e afins, bem como de quem mais se “arvorar” a
atravessar o seu caminho. E que todas as Igrejas, independentemente da religião
que dizem abraçar, tinham, sim, de declarar imposto de renda, não ficarem
isentas...
Sinceramente, padre Crispim
estava tão deprimido que até de trabalho escravo, adulto e infantil, e de
tráfico humano falou: que essas coisas também tinham de acabar, que a lei
deveria ser implacável com esse tipo de prática, que os responsáveis deveriam
ser punidos com rigor etc. Deixei-o dar vazão a sua mágoa à vontade. Em dado
momento, entretanto, quando percebi a exaustão do seu desabafo, arrisquei
perguntar se ele havia ouvido falar de um recente caso de apedrejamento no
Brasil, já que algumas pessoas, numa atitude extrema de intolerância, apenas
confirmando a falência do sistema judiciário e carcerário no país, quiseram
fazer justiça com as próprias mãos, ao que meu amigo sentenciou: — Mãos foram
feitas para dar carinho, tecer poemas de amor...
E, imagino, para também
desligar celular, pois, logo em seguida, padre Crispim saiu do radar.
Nathalie Bernardo da Câmara
Muito muito!
ResponderExcluirUma aparição, Mané do Café...
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