Foto: Divulgação
Irmã de Amina al-Filali, vítima do obscurantismo da legislação marroquina, em manifestação de protesto após a sua morte e cuja imagem estampa o cartaz.
Ela se chamava Amina, morava em Larache, no litoral do Marrocos, cuja praia homônima é uma das poucas do país onde as mulheres podem banhar-se sem o incômodo dos mirones, ou seja, curiosos de plantão. Porém, aos quinze anos de idade, Amina foi brutalmente estuprada por um homem de vinte e cinco. Felizmente, não engravidou, mas, infelizmente, a agressão da qual foi vítima selou, malogradamente, o seu destino, já que, ao confidenciá-la à família, esta relatou o caso as autoridades locais. Cumpridoras, portanto, da legislação acintosamente desumana do seu país, sobretudo no que diz respeito aos direitos das mulheres, essas mesmas autoridades ignoraram a gravidade da violência sofrida pela jovem e, ao invés de lhe dá a assistência e a proteção que uma situação como a que ela passou requer, não somente não prenderam o criminoso como também não o processaram, não o julgaram nem o condenaram a vinte anos de prisão – pena máxima prevista no artigo nº 475 do código penal marroquino para quem estupra menores de idade. Pelo contrário! Deram-lhe um bônus aparentemente irrecusável, ou seja, concederam ao elemento, de nome Mustafa Fallaq, a opção de se casar com a vítima, pouco importando se ela concordava ou não com tamanha sandice. O estuprador, que inicialmente recusou a proposta, findou por aceitá-la, já que seria a sua única alternativa para se livrar da condenação. Ocorre que a vítima não pretendia unir-se pelo resto da vida ao seu algoz, mas, diante da concordância dos seus pais, que foram pressionados pelo Tribunal de Assuntos da Família, ela foi obrigada a se subjugar a uma decisão judicial nada favorável. No caso, para ela. Assim, acordado em circunstâncias para lá de nebulosas, visto ter sido imposto por leis que de tão obtusas e caducas nem uma bengala as suportaria, o casamento de Amina com Mustafa foi, sem direito a recursos, consumado.
À época, entretanto, quando da aprovação pelo Tribunal de Assuntos da Família do casamento do estuprador com a sua vítima, uma manifestação foi organizada e liderada pela ativista feminista marroquina Fouzia Assouli, que também presidente a Liga Democrática do Marrocos para os Direitos da Mulher - LDDF, para protestar contra a decisão da Justiça. Em vão! Afinal, esse tipo de prática, que, aliás, para a feminista, já deveria ter sido abolida através do cancelamento do artigo nº 475, é, infelizmente, “um fenômeno recorrente” no país. De qualquer modo, o fato é que, durante os seis meses que foi obrigada – quanta humilhação! – a dividir o mesmo espaço com o sociopata que se tornou, por força da lei, seu marido, a jovem continuou a ser violentada sexualmente por ele, que, não satisfeito, ainda lhe infligia maus-tratos outros. Desse modo, não mais suportando uma situação que, de natureza, já era intolerável, a jovem por diversas vezes chegou a se queixar das agressões que sofria com membros da sua família. Os pais de Amina, por sua vez, que já haviam deserdado a filha pelo fato de ter sido estuprada, sinônimo, no Marrocos, de perder a honra – qual? –, se negou a tomar não importa qual a providência para livrá-la do seu martírio. Resultado: não vislumbrando nenhuma solução plausível para escapar dos seus tormentos – que não eram poucos –, Amina decidiu radicalizar e, aos dezesseis anos de idade, ingeriu veneno de rato. Não obstante, como se já não bastasse, Mustafa descobriu o feito e, numa repentina reação de fúria – mais uma e, no caso, a última, atacou violentamente Amina, que, pesar de já envenenada, foi arrastada pelos cabelos pelas ruas da cidade. Só que, não demorou muito, a jovem não resistiu e terminou morrendo, como, aliás, ela assim o desejou, já que, a seu ver, a morte seria a sua única porta de saída para se livrar da condição sub-humana na qual sobrevivia.
Enfim! O triste e lamentável desfecho que teve a vida de Amina, ocorrido em meados de março do corrente e repercutindo internacionalmente, pode até ser compreensível, considerando as circunstâncias com as quais ela teve de se confrontar, mas, eu perguntaria: quem, de posse das suas faculdades mentais, entenderia como aceitável uma legislação pautada pelo que há de mais retrógado numa sociedade majoritariamente muçulmana, que, por sua vez, é incapaz de, em pleno séc. XXI, questionar o fato de que a principal fonte da jurisprudência do seu país é o Alcorão, cujos ensinamentos – diga-se de passagem – igualmente norteiam o dia a dia da maioria dos marroquinos e cuja lógica é similar à que norteava as mentes insanas dos inquisidores católicos da Idade Média. Na verdade, para ser sincera, nem sei o que é pior: se o Alcorão ou a Bíblia... Bom! O fato é que não somente nesse caso específico, mas também em muitos outros, e de naturezas diversas, o problema não é cultural nem religioso, diz Fouzia Assouli. Para ela, o problema reside na “exploração política da religião”. Só que, para piorar – e para o desespero de muitos –, o islamismo é oficialmente tido como a segunda religião do mundo, perdendo no ranking apenas para o catolicismo, além de ser a profissão de fé que, nas últimas décadas, mais tem registrado, numericamente falando, o crescimento dos seus adeptos. Diante, portanto, dessas considerações, é de bom tom ressaltar que Amina não foi estuprada apenas uma única vez, mas várias. E não somente pelo hoje viúvo Mustafa, pelo artigo nº 475, pelas ultrapassadas tradições islâmicas e, ainda, pela sua própria família. Tanto é que a legislação do Marrocos, segundo Fouzia Assouli, “protege a moralidade pública, não o indivíduo”, sendo a religião um instrumento para, no caso, suprimir os direitos das mulheres. Assim sendo, ela prossegue: — Você não pode respeitar uma cultura que legitima a discriminação.
Detalhe de fotografia (divulgação) feita durante protesto no Marrocos, que reuniu centenas de manifestantes, repudiando os que são considerados responsáveis pelo suicídio de Amina. Diz o cartaz: O artigo 475 me matou.
Nesse ínterim, protestos contra o casamento e depois responsabilizando o artigo nº 475 por Amina ter posto termo a sua própria vida, pulularam nas redes sociais da internet e no Twitter, além de petições on-line exigindo a revogação do artigo nº 475. Exemplo disso é a iniciativa da Avazz, organização não governamental que desde 2007 mobiliza milhões de pessoas em todo o mundo para agirem em causas internacionais urgentes – da pobreza global aos conflitos no Oriente Médio e as mudanças climáticas –, que tem feito circular na internet uma petição – eu já assinei – pedindo o apoio e, no mínimo, 250.000 assinaturas a serem entregues ao primeiro-ministro de Marrocos, Abdelilah Benkirane, e aos ministros da Saúde, Justiça, Solidariedade, Mulheres, Família e Desenvolvimento Social, solicitando que o referido artigo, ou seja, o de nº 475, seja revogada em caráter de urgência, bem como a aprovação de uma nova lei que, de fato, garanta os direitos da mulher, sobretudo contra não importa qual violência que porventura ela possa vir a sofrer. Abaixo, portanto, o link para quem se interessar em assinar a supracitada petição:
Independentemente dos clamores que emanam dos 4 cantos do mundo pedindo a punição dos responsáveis pelo suicídio de Amina e, consequentemente, a revogação do artigo nº 475, o porta-voz do governo marroquino, Mustapha El Khalfi, que também é ministro das Comunicações, prestou a seguinte declaração à imprensa a respeito: — Esse doloroso incidente é uma questão que não podemos nos dar ao luxo de ignorar. Planejamos sentenças mais rígidas contra estupradores e vamos lançar um debate sobre a Lei 475 para reformá-la.
Enquanto isso, no Brasil, direto do blog Observador político, do médico brasileiro Gustavo Adolpho Junqueira Amarante, nos deparamos com um instigante texto sobre o Marrocos e a tragédia que culminou com o suicídio de Amina. Visivelmente indignado diante dos fatos já mencionados, o médico escreveu: — Que lugar é este, onde a virgindade vale mais do que a vida? Que pessoas são estas, que entregam a própria filha a um criminoso para que tenha suas “virtudes restauradas?”. Que livro sagrado leram, pois não há código que tolere tanta maldade e iniquidade praticadas contra uma criança? Que medos ancestrais afligem estes homens que estupram e estes homens que julgam as mulheres inocentes e vítimas como culpadas para expiar suas culpas mais íntimas e sórdidas? Que mundo é o nosso, preocupado e atento com dinheiro e negócios, que nada faz para impedir outros destinos dantescos como o de Amina? Quantas meninas e quantas Aminas há sem futuro, sem presente e rejeitadas por seu passado? Não se pode calar diante disso. Se você tem a intenção de conhecer o marrocos, não vá. Se seus amigos têm a mesma intenção, convença-os de não ir. Vamos boicotar o país que protege estupradores de crianças. Se seu governo apoia o marrocos, peça ao seu senador ou deputado para que pressione este país a modificar suas leis de modo a que haja respeito pelas mulheres. Se você usa as redes sociais, fale de Amina, de sua breve e triste existência e de sua morte. Eu, além deste texto, continuarei a grafar “marrocos” com letras minúsculas, e assim o farei até o dia em que as maiúsculas se justifiquem por algum ato maiúsculo de seu governo.
Quanto a mim, não tenho a menor pretensão de conhecer o Marrocos. Nunca tive, aliás, embora confesse que sou fã – quem não o é? – do filme Casablanca (1942), realizado pelo diretor húngaro-americano Michael Curtiz (1886 - 1962) e protagonizado pelo ator norte-americano Humphrey Bogart (1899 - 1957) e pela atriz sueca Ingrid Bergman (1915 - 1982). Isso sem falar que, independentemente de qualquer coisa, pode até ser aprazível morar no Marrocos, considerando que, no país, diferentemente do Brasil, existem apenas oito feriados ao ano – desnecessário dizer que estou sendo irônica... Enfim! Deve ser insuportável viver em um país cujas leis são elaboradas a partir dos ditames de um livro dito sagrado que não leva ninguém a lugar nenhum nem a nada, sendo, portanto, sinônimo de estagnação. Quem perde com isso? O próprio povo, no caso, o marroquino, que desconhece o que seja liberdade. O que dirá evolução de costumes e modernidade! De repente, quem sabe, talvez por ordem expressa do próprio Allah, que deveria desconhecer o que seja ética, o povo muçulmano – e não é de hoje – viva sob a égide do medo, da repressão e da violência tal qual viveram aqueles que, durante a Idade Média, foram subjugados as atrocidades cometidas pelos inquisidores do catolicismo. Sem maiores comentários...
Nathalie Bernardo da Câmara
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