quinta-feira, 8 de maio de 2014

CAFÉ COM PADRE CRISPIM


Cá estava eu, no 1° de maio, amanhecendo o dia, quando tocou a campainha – melhor surpresa não poderia haver em nublado feriado: a visita inesperada do meu amigo padre Crispim, de quem eu não tinha notícias desde o Carnaval – ocasião em que o conheci num retiro, embora não tão misericordioso assim, sob os olhares atentos do meu amigo padre Emílio e de uma freira, amiga de ambos, quando tomamos um café matinal nada frugal e, em seguida, aproveitamos para trocar umas ideias caminhando na praia. O fato é que, dias atrás, estando na propriedade rural da sua paróquia, padre Emílio recebeu e-mail de Mané e Eliana, um casal amigo em comum, informando que, numa recente viagem que fiz a uma ilha, fui atingida por uma espécie de tsunami dos Trópicos, torcendo o pé direito – aquele, o já “explodido” em março de 2012, que, aliás, à época, me rendeu um longo ensaio sobre o ocorrido –, e que estava com o dito cujo engessado, devendo ficar de “molho” por cerca de dez dias, quando deveria retornar ao hospital, a fim de me submeter a novos raios-x e saber se já estaria liberada para, se fosse o caso, encarar algum outro desafio do gênero.

Não deu outra! Simpático a trabalhos manuais, especialmente o fuxico, Padre Emílio correu para contar a resenha a Padre Crispim, colega de congregação, que, de passagem pela cidade, veio visitar-me e, ao me encontrar, saiu com essa: — Você adora umas muletas, hein!

Despojado, portanto, das suas vestes habituais, ou seja, à paisana, padre Crispim, que, além de piadista, costuma surpreender com a sua generosidade, chegou de maneira nada discreta: trazia um balaio repleto de bananas na cabeça, já que tinha passado na feira da rua ao lado e achou por bem trazer-me uma prenda, na vã ilusão, coitado – tão bem intencionado –, de adocicar a minha convalescença. E a cena? Padre Crispim lá, plantado, na soleira da porta, com aquele balaio na cabeça, e eu, no afã de ajudá-lo, por pouco não levando um tombo, já que, em certo momento, apesar de literalmente amparada pelo meu par de muletas, desequilibrei-me, visto que uma das pencas de bananas despencou balaio abaixo...

Enfim!

Instalados na cozinha, tudo já na mais santa paz, padre Crispim nos preparou uma vitamina de banana com tudo o que se tem direito: leite – óbvio –, granola, aveia, mel... Enquanto isso, num repente, eis que, após me transmitir as novas sobre padre Emílio, ora numa temporada em solo italiano, a minha visita passou a enumerar as propriedades nutricionais da banana, igual, provavelmente, reza uma missa, não hesitando em reclamar da alta do seu preço ao longo da semana, superando o da laranja; que muitas pessoas haviam perdido a noção; que, curiosamente, apesar de muito consumida no Brasil, a banana não era nativa, embora não se soubesse ao certo como havia sido introduzida; que, em tempos remotos, Adão e Eva já conheciam a “fruta do povo”, embora o seu nome científico seja “musa paradisíaca”; que, nos idos do séc. XVIII, frei João Pacheco, um religioso e cronista português, achou por bem associar a banana à maternidade, registrando, nos seus escritos de viagens, que, “quando o cacho quer brotar, a fruta dá gemidos, como mulher que vai parir...”.

Bom!

Papo vai, papo vem – só assunto trivial: conflitos na Ucrânia, Egito, Faixa de Gaza, Venezuela... –, padre Crispim nem hesitou em afirmar que “a ganância era o câncer da dita humanidade”, não disfarçando o seu desdém pela política externa dos Estados Unidos, cujos governos, um após o outro, no seu afã sem limites pelas riquezas alheias, transpiram belicismo – não parou por aí. Lá pelas tantas, já mais calmo, ele confessou ser admirador inconteste de Mujica. Empolgado, disse que o presidente do Uruguai era isso, era aquilo – uma rasgação de seda que só vendo! Não me segurando, perguntei o que padre Emílio achava disso tudo e ele, tomando um gole de café, nem pestanejou: — Deixe quieto.

Questionei, ainda, como, com as ideias avançadas que tinha, nada ortodoxas, lidava com a resistência na sua congregação – sim, porque sempre tem uma resistência. Não se fazendo de rogado, ele admitiu que, na sua paróquia, tirava de letra, ou melhor, tirava as enxadas do celeiro – sim, a paróquia de padre Crispim tem um celeiro – e convocava a todos para arar a terra, semear, argumentando que, sem agrotóxico e aditivos químicos, “a agricultura dignifica o homem”, bem como algo, tipo, “ao invés do crime, a sociedade é que deveria se organizar”... Pensei em mudar de assunto, mas, antes que eu o fizesse, uma reportagem sobre o atraso nas obras dos estádios construídos para a Copa, divulgada num canal de televisão, ligada na sala contígua, encarregou-se disso. De repente, numa serenidade nunca dantes vista, padre Crispim disse: — Não vai ter Copa.

Então...

Na sequência, quando, no mesmo telejornal, saiu a notícia fresquinha do reajuste de 10% do Bolsa Família, tal qual os brioches chegando da padaria, padre Crispim demonstrou certo incômodo, resmungou o vocábulo “oportunista”, deu de ombros e, gentilmente, me perguntou se eu poderia desligar a televisão, pois não suportava mais o cinismo de certos políticos, que eles haviam perdido o sentido das realidades, essas coisas. Concordando com o meu amigo, atendi ao seu pedido, visto que, afinal, não seria de bom tom desencadear refluxo em nenhum de nós, ainda mais no café da manhã – refeição esse que, no caso, foi devidamente degustada, justamente por ser padre Crispim bom de garfo, comendo um pouco de tudo, sobretudo de mandioca, tubérculo que, inclusive, ele disse costumar plantar nas terras da sua congregação  terras essas, aliás, produtivas e protegidas por arcos e flechas , o que, provavelmente, lhe inspirou para, inesperadamente, sair com outra das suas, sugerindo, igual criança levada, uma travessura daquelas, ou seja, que poderíamos enviar uma remessa de mandioca-brava para certo planalto das desilusões, “palco de muitas assombrações e algumas ressuscitações”, disse, maldosamente, acrescentando: — Não sobraria um!

Percebendo as intenções subversivas de padre Crispim, eu disse que, mesmo sendo tentador, o gesto não seria prudente, considerando as suas eventuais consequências, em nada palatáveis, e que, de papudas, já bastavam as do seu galinheiro. Foi aí, então, que, aproveitando a deixa, ele me pediu notícias de dona Palmira, uma conhecida nossa, que nutre particular “toque” por galinha caipira, e se eu havia finalizado o conto, por ele proposto tempos atrás, sobre as excentricidades da gentil senhora. Tipo num confessionário, confidenciei-lhe o meu, digamos, bloqueio criativo e, sem titubear, desatei a falar, igual se tece um rosário, explicando que os últimos anos não tinham sido nada fáceis – o meu interlocutor só ouvindo, bebericando calmamente o seu café, sacando, num dado momento, um charuto – interrompi o meu desabafo e remarquei o hábito recém-adquirido do meu amigo, que, por sua vez, se limitou a responder: — Cubano.

Diante do laconismo de padre Crispim, prossegui, abrindo-lhe, ainda mais, o meu coração, tal qual o sol, que, naquele momento, se abria mornamente, iluminando a manhã com os seus raios brandos: disse que eu me sentia muito oprimida, consumida por um brejo inteiro de sapos, alojados entre o esôfago e o estômago; que estava desencantada com a humanidade, repudiando a sua hipocrisia e superficialidade; que ansiava viver numa ilha deserta...

— É compressível, minha querida, ele atalhou, perspicaz, já que, para você, dois já é assembleia; três, confusão...
— E quatro é esculhambação, né, padre Crispim?, complementei, sarcástica, visto que, noutro momento, eu mesma havia me definido nesses termos para ele.

Desse modo, entendendo que cada um deve saber de si, uma das suas muitas filosofias, para tentar desfrutar de uma vida que não seja tão avassalada por dissabores, nem patética, no caso de sermos por demais ingênuos, padre Crispim, sempre muito prático, foi direto, alegando que, às vezes, estafa emocional confunde-se com estafa mental; que eu não criasse mais expectativas em relação a ninguém nem a nada, não mais me sujeitando a pessoas nem a situações que me constrangessem, mas que também não fizesse o mesmo com outrem. E que só não me aconselhava a ter paciência porque não costumava aconselhar ninguém a fazer o que nem ele mesmo fazia, finalizando: — Uma coisa, minha filha, só existe quando a gente fala nela, evidenciando-a; quando a gente não fala, a coisa deixa de existir.

Concordei, tacitamente, e, algum tempo depois, esgotando todas as possibilidades de uma alternativa viável para os desiludidos com a humanidade, os excluídos da sociedade e os desvalidos da sorte, perguntei a padre Crispim se gostaria de ficar para o almoço, antecipando-me em lhe informar o cardápio principal, ou seja, peixe. Matreiro, ele sorriu: — Não sendo traíra...


Uma chamada


Dias depois, pensando que padre Crispim já estava às voltas com os afazeres da sua paróquia, arando e plantando sabe-se lá o quê, eis que ele me ligou no celular. Desgostoso, lamentou que, mal havia chegado, foi comunicado por padre Emílio, que ainda estava na Itália, da decisão do Vaticano em erradicar a pedofilia no seio da Igreja católica, já que, para o meu amigo religioso, um compromisso dessa natureza não era coisa que se firmava perante a ONU nem, muito menos, perante um sem fim de fiéis espalhados no mundo inteiro, sobretudo quando a instituição tem plena consciência de que não irá cumpri-lo, comportando-se, desse modo, irresponsavelmente, igual à maioria dos políticos, principalmente os brasileiros, que, em época de eleições, só não vendem a alma porque não têm uma e que, quando eleitos, apenas se empenham na dilapidação do patrimônio nacional em prol de si e dos seus aliados, em detrimento do povo, que permanece analfabeto e miserável, sem acesso aos meios e bens de produção.

Inconformado, padre Crispim disse, ainda, que, antes mesmo de prometer o que é incapaz de cumprir, a sua Igreja deveria rever os seus valores e abolir, no caso, o celibato – caso contrário, apenas corrobora o que, de há muito, já foi institucionalizado, que é a hipocrisia, criando, na verdade, uma instituição dentro de outra instituição. E o meu amigo estava tão aborrecido que, da sua ira, não poupou nem as Igrejas ditas neopentecostais, com muitos dos seus pastores pregando a segregação racial, a discriminação dos gays, congêneres e afins, bem como de quem mais se “arvorar” a atravessar o seu caminho. E que todas as Igrejas, independentemente da religião que dizem abraçar, tinham, sim, de declarar imposto de renda, não ficarem isentas...

Sinceramente, padre Crispim estava tão deprimido que até de trabalho escravo, adulto e infantil, e de tráfico humano falou: que essas coisas também tinham de acabar, que a lei deveria ser implacável com esse tipo de prática, que os responsáveis deveriam ser punidos com rigor etc. Deixei-o dar vazão a sua mágoa à vontade. Em dado momento, entretanto, quando percebi a exaustão do seu desabafo, arrisquei perguntar se ele havia ouvido falar de um recente caso de apedrejamento no Brasil, já que algumas pessoas, numa atitude extrema de intolerância, apenas confirmando a falência do sistema judiciário e carcerário no país, quiseram fazer justiça com as próprias mãos, ao que meu amigo sentenciou: — Mãos foram feitas para dar carinho, tecer poemas de amor...

E, imagino, para também desligar celular, pois, logo em seguida, padre Crispim saiu do radar.


Nathalie Bernardo da Câmara

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