quinta-feira, 1 de março de 2012

Do túnel do tempo...

“Gatos amam mais as pessoas do que elas permitiriam, mas eles têm sabedoria o suficiente para manter isso em segredo...”.

Mary Wilkins (1852 – 1930)
Escritora norte-americana


No dia 31 de janeiro de 2009, de passagem por Natal, onde criei este blog, publiquei a sua segunda postagem. Intitulada O Caso Billy (http://abagagemdonavegante.blogspot.com/2009_01_01_archive.html), a referida postagem tratava de um escândalo divulgado pela mídia não fazia muito tempo. Ou seja, um gato, de nome Billy, teria supostamente recebido recursos do programa Bolsa Família durante sete meses. Resumindo: o caso, em si, não passou de uma das fraudes cometidas pelo próprio coordenador do programa do governo federal no município de Antônio João, a 377 quilômetros de Campo Grande, no Mato Grosso do Sul, que havia cadastrado o felino como sendo um dos seus filhos, com direito, inclusive, ao seu sobrenome. Porém, o mais bizarro de toda essa história é que, após uma série de investigações, foi descoberto que Billy, além de gato, não estava mais entre os vivos, sendo o próprio coordenador municipal do Bolsa Família, portanto, o único beneficiário dos recursos que deveriam ser destinados ao finado felino. Billy, coitado, não passou de um laranja – episódio inusitado, mas não surpreendente, sobretudo num país onde a corrupção, aliada à impunidade, anda a galope. Daí que, como o leitor poderá confirmar logo mais, ao empreender algumas pesquisas na internet a respeito do mencionado qüiproquó, que – diga-se de passagem – deixou impune o gatuno, eis que, sem a menor das pretensões, mergulhei, inconscientemente, no imaginário sem fronteiras do universo felino. E foi exatamente esse universo o tema da terceira postagem deste blog, publicada no dia 20 de fevereiro de 2009 (http://abagagemdonavegante.blogspot.com/2009/02/gatos-e-homens-aos-meus-gatos.html), embora eu já pretendesse tecer algumas linhas sobre a histórica e controvertida relação entre os escritores, os livros e os gatos. Porém, de certa forma revisada e atualizada, resolvi republicar a mencionada postagem. À época, contudo, eu a dediquei aos meus gatos, que estavam em Brasília. No entanto, nesta nova versão, a dedicatória vai para a natureza felina de todo escritor, ressaltando que os cortes que fiz do texto original em nada o comprometeram, devendo, portanto, as supressões feitas serem reaproveitados noutras aventuras literárias, já que, agora, decidi focar exclusivamente no tema em questão.


GATOS E HOMENS


I


Gatolândia

“O gato é zen,
um monge portátil à disposição de quem o saiba receber...”.

Artur da Távola (1936 - 2008)
Ode ao gato


Pesquisando na internet sobre o caso do gato Billy – a minha postagem anterior tratou desse assunto –, me deparei com uma diversidade incrível de home pages sobre gatos de um modo em geral. Sim, existe uma verdadeira Gatolândia virtual organizada, amiga e solidária, onde os membros dessa felina comunidade interagem, saudavelmente, entre si. E os assuntos são os mais diversos, desde que englobe, é claro, o mundo animal dos seus gatinhos. São sites, blogs, e-mails... Um troca-troca de figurinhas sem fim! Receitas culinárias para diversificar o cardápio dos bichanos, dicas para combater o fastio, a cólica, o vômito ou a diarréia; dicas para resolver desajustes comportamentais e, por mais incrível que pareça, insônias... Porém, se o problema for saber do paradeiro de algum parente do seu gatinho – engana-se quem pensa que gato não tem parente –, de alguma forma, na internet, você tem 90% de chances de localizá-lo. O parente e, de quebra, o motivo da insônia. Quem diria que há gato insone...

Bom! Os membros da Gatolândia aproveitam, ainda, para postar fotos e tornar conhecidos os seus filhotes na internet, chegando até a marcar encontros entre os bichanos. Só que, muitas vezes, enquanto os seus queridinhos rolam na grama, quando há uma, termina rolando outro tipo de encontro, o dos seus donos. De repente, ele a acha uma gata; ela, por sua vez, também o acha um gato... Mas, aí, já é outro assunto. O fato é que, na internet, os donos dos gatos agendam cruzamentos de raças, dos gatos, óbvio, casamentos... Sim, gatos também casam. Alguns, dependendo do poder aquisitivo e da excentricidade dos donos, com toda a pompa e cerimônia que a ocasião exige. Pois é! Na Gatolândia, você encontra de um tudo. Muitas vezes, nem precisa sair de casa! Prático, prático. Igual a um pedido de pizza. É entrega em domicílio pra lá, assistência em domicílio pra cá... E, se tiver um cartão de crédito, facilita ainda mais, porque resolve tudo virtualmente, podendo ser um pacote de ração, uma surpresinha da peixaria...

Afinal, qual é o gato que não gosta de um bom e suculento peixe? Ah! Não posso me esquecer de dizer que produtos de beleza e de higiene, remédios, um novelinho de lã para o gatinho brincar, DVDs de desenhos animados – os gatos adoram os do Garfield –, roupas e acessórios também podem ser adquiridos pela internet. Inclusive coleira! Mas, quem ousaria? O fato é que, via on-line, você pode chamar o veterinário, o nutricionista, o homeopata, o cabeleireiro, a babá, o personal training... Quem diria! Agora, se o bichano estiver estressado ou deprimido, é só chamar um terapeuta, que, além de recomendar repouso, pode marcar, dependendo da gravidade do caso, umas sessões de terapia domiciliar. Básicas! E logo, logo, o seu gato vai ficar novinho em folha, voltando a brincar com as flores do seu jardim, se você tiver um, e retomando a sua rotina. Só que não para por aí! Na Gatolândia, por exemplo, você pode até encomendar o mapa astral do seu gato, que, por ser um ser vivo, também tem direito a um.

Agora, para quem tem dificuldades de relacionamento com o seu gato é possível encontrar dicionários sobre a linguagem aparentemente indecifrável dos felinos; manuais que ensinam a conviver harmoniosamente com eles; orientações sobre adoção... Gato adotado? A novidade, pelo menos para mim, soa até estranha, já que, devido a sua natureza altiva, o gato é quem, normalmente, escolhe o seu companheiro, não dono. Sim, porque gato não tem dono. A sua altivez não permite. O fato é que, quando adotados, alguns se adaptam fácil; outros, não. E, aí, saem a vagar, em busca de um novo lar, contanto, contudo, que seja escolhido por eles. Quanto à infinita página da internet, como bem o disse o escritor português José Saramago (1922 - 2010)... Nela, você também pode pesquisar sobre as interpretações de sonhos com gatos e os simbolismos e mitos que lhes são atribuídos; expressões populares, pejorativas ou não, referentes ao felino; fábulas, crendices, superstições... Essas, então, nem se fala!

E o universo sem fronteiras da internet só contribui para a sua proliferação, embora muitos papais e mamães de gatos façam tudo para desmistificá-las. Sem falar nas frases de caminhão que, vagando nas ondas, eu encontrei! Uma delas: “A mãe me chama de cachorro; a filha de gato”. Tem de um tudo, mesmo! Músicas, fotografias, documentários, ficções, animações, curtas e longas, pinturas, desenhos, esculturas, versos, cordel e até livros em homenagem a esses seres sem donos, senhores de suas próprias vontades. Pensava assim a psiquiatra brasileira Nise da Silveira (1905 - 1999), que, mais do que ninguém, soube entender a necessidade de liberdade dos gatos. Considerada uma pioneira no uso dos gatos como co-terapeutas no tratamento de doenças mentais, que ela costumava chamar “os inumeráveis estados do ser”, e se baseando nas idéias de estudos do psiquiatra suíço Carl Jung (1875 - 1961), de quem era discípula, Nise escreveu o livro Gatos, a emoção de lidar, publicado por Léo Christiano Editorial, em 1998.

Aí, um parêntese! Na verdade, em momento algum eu pensei em escrever sobre a freqüência do nome gato nos sites de pesquisa da internet ou de fazer qualquer referência mais detalhada ao bichano. Aconteceu, como eu já disse, casualmente. Assim, como eu já queria escrever sobre os escritores e a solidão, sobretudo em seus momentos de criação literária, quando, por mero acaso, me deparei com sites que falam da relação entre escritores e gatos, achei que poderia acrescentar o felino em minhas divagações. Despertei, portanto, uma súbita curiosidade pelo amistoso e cúmplice convívio entre os escritores e os gatos, bem como pela atração dos últimos pelos livros. Ainda mais quando os livros estão em uma biblioteca, que, parece, é visto como um santuário pelos gatos. Sem falar que a maioria dos escritores que convive com um gato, “símbolo da liberdade incondicional de sonhar”, para o blogueiro brasileiro Joel Teixeira, faz da sua estimada companhia personagens de poemas, contos, romances e crônicas.

Não foi a toa que o poeta mineiro, brasileiríssimo, Carlos Drummond de Andrade (1902-1987) sentenciou: “o gato é símbolo e guardião da vida intelectual...”.


II


Os escritores, os livros e os gatos

“Os gatos são distantes, discretos, impecavelmente limpos e sabem calar.
Falta mais alguma coisa para considerá-los uma excelente companhia?”.

Marie Leszczynska (1703 - 1768)
Rainha da França


A lista de títulos sobre aquele que “possui todas as virtudes do homem sem os seus vícios”, como bem o disse o poeta inglês Byron (1788 - 1824), é incalculável. O norte-americano Mark Twain (1835 - 1910), por sua vez, disse que “se fosse possível cruzar o homem com o gato melhoraria o homem, mas pioraria o gato”. Por isso que, neste meu ócio criativo, tese apregoada pelo sociólogo italiano Domenico de Masi – totalmente vivo, ufa! –, me limito a só passar o meu tempo. Gostaria de citar, portanto, a título ilustrativo, algumas pérolas literárias que, a exemplo dos gatos, não morreram, mas, simplesmente, desapareceram – sim, porque gatos não morrem, desaparecem –, a começar pelos escritores brasileiros Machado de Assis (1839 - 1908); Raul Pompéia (1863 - 1895); Manuel Bandeira (1886 - 1968); Graciliano Ramos (1892 - 1953); Mário de Andrade (1893 - 1945); Cecília Meireles (1901 - 1964); Erico Veríssimo (1905 - 1975); Mário Quintana (1906 - 1994) e Guimarães Rosa (1908 - 1967).

Lembrando, ainda, Rachel de Queiroz (1910 - 2003); Jorge Amado (1912 - 2001); Vinícius de Moraes (1913 - 1980); Zélia Gattai (1916 - 2008); Clarice Lispector (1920 - 1977), nascida na Ucrânia, mas naturalizada brasileira; João Cabral de Melo Neto (1920 - 1999); Fernando Sabino (1923 - 2004) e tantos outros mais. Já entre os estrangeiros podemos mencionar o italiano Dante Alighieri (1265 - 1321); os ingleses Wiliam Shakespeare (1564 - 1616) e Lewis Carroll (1832 - 1898); o alemão Goethe (1749 - 1832); os norte-americanos Edgar Allan Poe (1809 - 1849); T. S. Eliot (1888 - 1965); Ernest Hemingway (1899 - 1961) e William Burroughs (1914 - 1997); os franceses Charles Baudelaire (1821 - 1867); Anatole France (1844 - 1924), Jean Cocteau (1889 - 1963) e Jean-Paul Sartre (1905 - 1980); os tchecos Franz Kafka (1883 - 1924) e Rainer Maria Rilke (1875 - 1926); os portugueses Fernando Pessoa (1888 - 1935) e José Saramago, já mencionado, além do chileno Pablo Neruda (1904 - 1973).

Ah! Já ia me esquecendo de Julio Cortázar (1914-1984), nascido na Bélgica, mas naturalizado argentino, que também teceu versos aos gatos. Pois é! Foram e são muitos os escritores – a quantidade é incalculável – que já tiveram ou têm um ou mais gatos e que, pelo menos em um único momento da sua vida, escreveram para os seus bichinhos de estimação ou foram por eles inspirados para escrever não importa qual o tema das suas criações literárias. Atualmente, no Brasil, por exemplo, temos atuantes um sem fim de escritores. Com ou sem um companheiro felino, esses escritores já escreveram ou, um dia, ainda vão escrever sobre esse ser que, parece, já nasce pronto, a cada novo dia nos surpreendendo, com ou sem empáfia. Não importa! E isso sem falar no fascínio que as letras devem exercer sobre os gatos, já que muitos costumam morar em bibliotecas... Descobri, por exemplo, que existe até uma listagem da Library Cats Map, com sede em Boston, sobre os Gatos de biblioteca do mundo inteiro.

Os gatos gostariam, então, do farfalhar das folhas dos livros e do seu cheiro, quando algum leitor os folheiam, ou seriam os ácaros que, de repente, são fontes de alimento? De repente, ainda, seriam eles amantes da palavra por serem gatos intelectuais? O fato é que, se um gato é de estimação de algum escritor, ele está sempre próximo em seus momentos de criação literária, embora se limite a contemplá-lo, deitado e silencioso, sem o alarde dos cachorros, que, muitas vezes, só latem para chamar atenção e se tornam irritantes. Nossa! A diferença entre o gato e o cão é tão gritante que Mademoiselle Colette (1873 - 1954), escritora francesa, disse que “os gatos pensam que são Deus, enquanto os cães pensam que são humanos...”. Imagine um pit-bull, transgênico... Bom! Quando não, o gato faz o que ele mais gosta, que é se refestelar em um doce e lânguido cochilo ou, ainda, sonhar acordado com alguma tigela de leite, de ração ou, simplesmente, com um mero afago do seu dono, a quem faz companhia.

Mas, afinal, quem busca quem e quais as explicações para tantas afinidades entre os escritores e os gatos? Seria uma atração mútua, como questionou a escritora brasileira Aline Ponce, que, inclusive, tem um casal de felinos? A gata fêmea, por exemplo, é bastante mimada, já que, enquanto a sua dona escrevia um texto que li, ela ficou o tempo todo sentada no seu colo. Vai ver porque gosta do som que o teclado emite quando digitado – coisa que nenhum cachorro faria. Sairia latindo... Aqui, contudo, um parêntese, nos remetendo à Idade Média, quando ensandecidos inquisidores da Igreja católica rotulavam certas mulheres de bruxas, lhes imputando inúmeras atrocidades, apenas porque, além de fazerem chás com ervas medicinais, criavam gatos. A curiosidade é que, caso não tivessem um, passavam a ter. E, detalhe, preto, que os católicos associavam as trevas. Homem bruxo? Nunca! No máximo, mago – uma patente diferenciada. Tipo o Mago Merlin, que também tinha um gato, embora branco, associado à bondade.

Enfim! Os gatos não são ociosos nem preguiçosos, não importa a cor, os seus matizes. Eles, simplesmente, ficam, como se diz, na deles. Para Nise da Silveira, por exemplo, “o gato é altivo e o ser humano não gosta de quem é altivo...”. Os gatos são silenciosos, mas não egoístas, fazendo, simplesmente, o que querem. São autônomos, de forte personalidade, sendo o espaço que habitam sinônimo de fronteira. Tanto que, em tempos remotos, considerados mágicos, eram venerados no Egito, a ponto de serem mumificados e enterrados em acrópoles destinadas exclusivamente a eles, inclusive com direito a luto por parte dos seus familiares. Sim, eles são tão poderosos que muitos humanos têm ailurofobia, sinônimo de galeofobia, ou seja, medo patológico de contato com gatos. Fobia a gatos. Eu, particularmente, os adoro, a exemplo dos escritores brasileiros Ferreira Gullar, que escreveu um livro para homenagear o seu, e Lygia Fagundes Telles, que também já publicou sobre os gatos, por quem, aliás, nutre sincera afeição.

Sei não, mas, se por acaso, Lygia, por ser a escritora famosa que é, cadastrasse Iracema, a sua primeira gata, no programa Bolsa Família, o seu gesto, no mínimo, seria visto como excentricidade de artista... Enfim! A solidão é algo interior, da natureza humana, embora, na maioria das vezes, seja associada aos escritores. No entanto, nem sempre o fato de a gente estar cercado de pessoas implica que não se sinta só... O fato é que se alguém é escritor essa sensação apenas se acentua, podendo, contudo, ser minimizada com a presença de um gato. Diria Lygia: “O bravo vigilante das horas mortas, sentinela perdida da meia-noite”, considerado por ela como digno, honrado, mesmo quando deixam o seu dono “no esquecimento silencioso das suas passeatas noturnas” – coisa que, quando acontece, não é nenhum problema, já que, fiel, o companheiro sempre retorna ao lar, para o abrigo e o aconchego que lhe garante o seu dono. Tanto que, quando passar certa tempestade, a primeira coisa que farei será adotar um gato...

Nathalie Bernardo da Câmara


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